26 de dezembro de 2013

A MENINA DANÇA



A menina dança
Ela me encanta
Quando rodopia
No meio da cena

Nenhum aparato
Consegue detê-la
De seus olhos vem
Lágrimas de circo

Primeiro ela gira
Sobre meu alpendre
Aos poucos atinge
Outro patamar

Sobe à claraboia
Faz um ziguezague
Entre o meio-dia
E o final da tarde

Mas logo se cansa
De dançar assim
Resolve ser fora
De si; na avenida

D´avenir se perde
Vagueia sem hora
Maja seminua
Joelho de miss

De noite e de dia
A menina dança
Pode ser minha
Mas nunca se sabe

Manoel Olavo

6 de dezembro de 2013

SIMETRIA DO ALUVIÃO


Clareira
Da mata
Na manhã
Desperta

Choveu forte
Toda a noite

Das copas
Encharcadas
Gotas ainda
Caem

O visgo grosso
Da água
Pende
Da folha
Que se dobra
E desce
Até o chão

A terra
Chupa
O que o mato poreja

O caracol
Escala
A ebúrnea pedra
Nela deixa
Rastro
E desce
Até o chão

Formigas
Formam bola
Vermelha
De milhares
Em cima
D água

O besouro
Rola lama
Vira bosta
O besouro fede

A folha morta
Também fede
Cheiro de marrom
Decomposto

No meio da mata
Água de chuva
Forma um regato

As folhas mortas caem
No leito
Que leva
Planta podre
Água turva
Formiga
Graveto
Seixo

O sujo do mato
Deposita-se
No chão

O galho
Morto
Fica preto
Esfarela-se
Na terra

A água
Sorve sal
Da pedra
Que lenta
Se dissolve

A folha
Vira lodo
E grão
De modo sólido
Se inscreve

O ataúde
Da mata
Rumina
Restos úmidos
Cobre-os de terra

Do oco do pau
Que ali derrete
Vem o podre
Vem o vivo
Que se adensa
Na lama
Que escorre
Ao rés
Do chão

No podre
Pulula
A vida

Medida
Simétrica
Do aluvião

Manoel Olavo

4 de dezembro de 2013

ASSIM TODA LOUCURA

Assim toda loucura fica proibida
Toda paixão fica controlada
Toda ilusão será perdida
E os deslizes serão relatados
A quem possa deter os descontentes
Assim todo dia há de ser brando
Serenamente pouco a pouco
Cada coisa em seu lugar um dia por vez
Assim viveremos em paz livres de excessos
Livres da vertigem de altura num tal cansaço
De existir que não surpreende descobrir que
Os sonhos estão suspensos até segunda ordem

Manoel Olavo


29 de novembro de 2013

PARTIAS



Mal tinha reparado
Partias suavemente
Vida corpo boemia
Seguias hesitante
A alma adolescente
Duro como foste em
Vida, moldando águas
Dissolvendo rochedos
Fera de garras magras
Revirando o terreno
Onde juntavas conchas
Frágeis plumas fósseis
Um pouco mais e virão
As ilhas encobertas
O silêncio invencível do
Mar de vidro sem depois

Manoel Olavo

25 de novembro de 2013

FOME

Fome: fome de ver a forma bronzeada
Fruí-la redonda, virginal ou seminua
Na maciez de altos e baixos exibidos.
Nem fartura nem aridez: eis teu apogeu.

Fome: fome de ver a forma eviscerada
Rasgar o manto que recobre as aparências
Pois o olhar, na avidez das visões extintas,
Vem devorar o coração da matéria exausta.

Fome: sílfide ou vestal, tu és a besta.
A baga nua perde o sumo, ateia fogo.
Teu volume-cor dissipa-se na retina
Desfeito em luz e em prazer suposto.

Fome: a que ousa chegar sem aquiescência.
Dado febril, brutal, de consumo imediato.
Dos fascínios coletivos, o mais premente.
Antiasceta por excelência – és maldição?

Manoel Olavo

15 de novembro de 2013

O IDEAL



- “Atingir o ideal? Como assim? O ideal é um negócio inatingível. Não foi feito pra ser alcançado. É um ideal, pomba, o nome está dizendo. Foi feito pra tentar, não pra existir. Toda procura de ideal está condenada ao fracasso. É assim no amor. Nós tentamos formas ideais de amar. Só isso. Se conseguiremos algo? Não sei. Mas, com certeza, sairemos frustrados”. – Ele estava surpreso com a clareza de suas palavras. Havia um sentido de autoridade nelas, algo que não planejara. Mais do que isso, havia convicção. À sua frente, a mulher o ouvia com atenção. Então ela respondeu:

- “Quer dizer que nós devemos desistir? Não adianta lutar por um relacionamento mais feliz, mais verdadeiro? É por isso que você está cada vez mais distante e voltado pro seu próprio umbigo?” – O tom, como de costume, era de cobrança. Irritado, ele disse:

- “Cada um deve cuidar de seu próprio inferno. Não adianta fingir comunhão. Só eu sei dos meus motivos e necessidades. Não vou me dedicar a um ideal de casal que me constrange. Que não passa de uma convenção social. Trágico é você acreditar na mitologia social da felicidade a dois”.

Ele sabia como irritá-la durante uma discussão. Bastava assumir uma postura didática ou violentamente racional. Ela ficava com cara de ódio, cara de aluna humilhada pela oratória do professor – ou seria inveja? De todo modo, ele às vezes fazia isso só pra provocar. Desta vez, não. Parecia acreditar no que dizia. E talvez fosse mesmo verdade.

- “Você se recusa a lutar por nós!” – ela respondeu – “Não dá pra viver com alguém como você. Não dá pra se agarrar em justificativas racionais o tempo todo. Você se esconde por detrás das ideias. Não sente nada, se esconde atrás de argumentos. Usa a lógica pra não se comprometer!”.

Ele sabia que ela estava certa. Ele realmente se escondia. Por comodismo, por fuga, por desconhecimento. Mas o que importa? Quem consegue expor exatamente a natureza do que pensa e deseja aos outros? Quem é sincero a tal ponto? Todos nós nos escondemos atrás de ideias, de personagens; inclusive ela, eternamente protegida pela máscara de feminista-capaz-de-demonstrar-emoções-e-desejos. Uma farsa como as demais. Um clichê politicamente correto. Quanto às emoções, ele raramente as distinguia. Na maioria das vezes, variavam entre a dor e o incômodo.

Em seguida, ele voltou à carga: - “O que é um amor ideal? É uma abstração! Você quer um homem que não existe, um companheiro pré-fabricado de teste de revista feminina. Homem nenhum vai falar pra você de sonhos e frustrações, homem nenhum vai discutir zonas erógenas. Homem nenhum vai ter saco pra ouvir você falar de antigos namorados. Eu entendo a necessidade de ideais, respeito-os; mas seu ideal de homem é escroto. Portanto, indefensável” – Seu tom de voz se alterava e as palavras ácidas eram um convite para uma briga sem disfarces. 

“O problema é que você não suporta frustrações” – ele continuou. – “A mocinha feminista não se conforma que eu seja um homem real, com defeitos. Fica frustrada porque eu não correspondo ao seu modelo de homem, algo entre uma melhor amiga do colégio e um cabeleireiro que ouve problemas enquanto alisa os seus cabelos. Eu não sou assim, detesto a conversa fiada feminina. Sou a favor da criminalização do sentimentalismo!”.

Um golpe, depois outro. A vontade era de acertá-la sem parar, deixá-la tonta, jogá-la nas cordas. Mas ela não desistia. Sua força parecia aumentar conforme era fustigada. Talvez por isso ela gostasse tanto de discussões intermináveis sobre a vida de casal. Nada além do velho masoquismo coloquial. Então ela revidou:

- “Você está sendo sarcástico pra fugir da discussão. Conheço sua estratégia. O que eu quero é melhorar o nosso relacionamento. Apostar em nós. Quem disse que eu não suporto frustrações? É só o que eu faço em nosso casamento! Sempre te convencendo a falar sobre os problemas. Sempre suportando seu mau-humor, sua indiferença. Sempre tentando aparar arestas. Sempre pronta para te ouvir, enquanto você fica distante quando eu falo de mim. Você quer transformar seu egoísmo numa forma de realismo refinado, mas isso não é verdade” – ela lhe disse, enumerando uma série de atitudes onde apenas o esforço dela aparecia. Na lista, ela recebia o papel “daquela que realmente se importa com a relação”. Ele não passava de uma criança birrenta. Nisto baseava-se a sua percepção.  Era tudo o que ela pretendia salvar. As boas intenções femininas, ele já compreendera, eram bombons envenenados. Ademais, como poderia discutir com alguém que tem o monopólio das virtudes morais?

- “Egoísta!” – ela disse, a palavra soando como a pior das acusações. - “Você é um egoísta”, - ela repetiu - Era o golpe fatal, a ferida que latejava a cada pronúncia. O contrário desta acusação, é claro, era o exemplo comovente que ela dava: candura, sacrifício, desinteresse, dedicação generosa. Como discutir nesses termos? Não podia entrar num jogo em que já começava perdendo. “Quer saber? Foda-se você e a sua bondade!” - Saiu enfurecido, batendo a porta.
                                             
                                                              * * *

            Mais tarde, enquanto andava pelo aterro, olhou as palmeiras distribuídas simetricamente sobre o gramado verde. - “Um jardim planejado como este” – pensou, – “pode ser bonito. Mas perde a espontaneidade. Não tem a beleza imprevisível dos arranjos naturais. O mundo devia ser assim: espontâneo” - continuou pensando.

- “Nossa racionalidade atrapalha tudo. A vontade de organizar o mundo violenta a vida.” – conjecturava. “A razão humana é uma doença. Um vírus incapaz de perceber a sua patogenia – como, aliás, devem ser os vírus. A ânsia de compreensão transforma relacionamentos num jogo esquemático de estereótipos, numa comédia de erros onde os parceiros fazem uma coisa, pensam outra e dizem uma terceira. O cinismo é a única maneira de suportar algo assim. Cinismo e manipulação. Mas eu não sei jogar o jogo do cinismo, nem sou ardiloso o bastante para manipular. Nada disso me interessa” - concluiu, enquanto caminhava.

Um pouco mais adiante, atravessou a faixa de areia à beira-mar. Começou a andar pelo calçadão de pedras portuguesas. Estava transtornado. Não parava de refletir sobre a existência de uma entidade tão absurda como o casamento. - “Como puderam conceber um negócio tão inviável?”, pensou. “Um homem e uma mulher, numa competição diária, onde não deveria haver disputa. Uma prisão sem duração definida. Um chiqueiro de porcos, onde quem está dentro quer sair e quem está fora quer entrar. Um jogo de poder sem sentido, sem regras, sem vencedores. As mesquinharias da convivência. A espuma das emoções febris. A mecânica do desempenho sexual. O apogeu do tédio”.

- “Deve haver alguma solução” – pensava. Sentia-se culpado, a angústia crescia. Ele precisava se esforçar pra atingir o ideal que ela sonhava. Abrir mão do egoísmo. Enfrentar a intimidade. Entender suas emoções. Aproximar-se dela. Já tentara antes, muitas vezes. Sempre foi inútil. Mas era preciso corresponder. Há um ideal vindo de fora, um ideal que nasce dela. É preciso ser um homem de verdade. É preciso inventar um novo modo de ser. Alguém diferente surgirá do desastre. Era isto, estava decidido! Ela iria ficar contente. É preciso agradecer à mão que ergue o machado pra nos decapitar.

Enquanto organizava os pensamentos, notou que suas pernas vacilavam e alguma coisa começava a prender os seus pés no chão, impedindo-o de caminhar. Alguma coisa grudenta, um tipo de cola. Então ele viu que começara a derreter em cima das pedras portuguesas do calçadão. Levou um susto, mas não teve forças para reagir. Primeiro, foram os pés; a seguir, os tornozelos; depois, a parte inferior das pernas. Por fim, todo o seu corpo derretia, como uma vela acesa derramando cera. Seus ossos, seus músculos, seus tendões, suas vísceras desfaziam-se. Os líquidos misturavam-se numa geleia turva. Prisioneiro de metáforas, refém de uma história inconclusa, desaparecia no visgo de vagos conflitos morais. Os cabelos foram a última parte a desaparecer, num soluço azedo.

                                                  * * *

Manoel Olavo
                                             

28 de outubro de 2013

INVERNO


Inverno
Na dureza das palavras

Inverno
No breviário das sombras

Inverno
No equilíbrio das somas

Lendo
Os próprios pensamentos

Água
Gotejando da parede

De rocha
Ter silêncio e recolhimento

A morte
No mergulho tátil das trevas

Sem eu
Ser desfeito menos um

A morte
É finalmente estar sozinho

Noite
Fria de completa solidão

v

       i

              b

                    r

                            a

                                    n

                                            d

                                                    o


Manoel Olavo

OUTONO


Lembre agora amigo
A primeira você abandonou
A segunda o traiu
A terceira aquele tiroteio
A quarta francamente
A quinta um pacto de morte
E lá se foi você
Aos pedaços
Aos frangalhos
Aos milhares

De noite cintilavam
Pirilampos
E você estava só

Sob um signo luminoso
Você cruzou a estrada
Que já não temia mais
(flechas dardejando
sobre sua cabeça)
Trêmulo você se resignava
Empilhava camadas de sol
Na meia-luz de um
Outono antecipado

Havia sonho
Amigo
Mas era pouco

Pro senso comum
Isso um dia passa
Como o amor acaba


Manoel Olavo

27 de outubro de 2013

VERÃO


Durante o verão, que tudo aquecia,
Eu despertei e trouxe até mim
Uma fêmea gentil, nua e macia,
De cuja beleza antes desavim.

A quantas poderei amar? Em cada
Nova mulher, consagra-se o lirismo.
Em todas, sim, a verdadeira amada.
Em todas, sim, a perdição do abismo.

Em todas, sim, um amor infinito.
Transbordante de mim, me ultrapasso.
Sou feliz a cada sim, a cada grito
De prazer da mulher que satisfaço.

Com elas, sou infinito. Sou fogo
De amor, chicote de tesão talhando
Chaga. De tanto amar, invento o jogo
De conquistar pra não morrer amando.

Meu corpo é a dissipação do uso.
Esta fome de amor a todo instante
Será fatal? Não, eu louvo este abuso
Enquanto morro quente e triunfante.


Manoel Olavo

24 de agosto de 2013

A VIDA INTEIRA



A vida inteira
Refém da morte
Preso na trilha
Da mala sorte

Rasgar o manto
De rei menino
Guiar o barco
Do desatino

Tomar de assalto
A estrela falsa
Erguer o voo
Que a asa alça

Andar às cegas
No seu encalço
Rodar veredas
Com passo falso

Desastre largo
Sem par nem porto
Amar o amargo
No mar da boca

A vida inteira
Saudade louca
Viver na beira
Da vida pouca


Manoel Olavo

4 de julho de 2013

SABIA



Só sei que, de longe, eu te adivinhava
E me adivinhavas do mesmo jeito
(Podias me ver entre a luz e a sombra)

Assim eu sabia do gramado, da varanda, do pé-direito alto
Do telhado, da escada, da mesa de jantar, do edredom branco
Sabia das plantas, do cinzeiro, da estante de livros
Do que te pertencia, menina
Do teu recato

Sabia do jardim que planejavas
Do vaso de jasmim, das flores plantadas
Da lágrima sutil que insiste em cair
De teus olhos

Sabia de você, menina solitária
Sobre a pedra, sempre pensando
Lá onde a dor te enclausurava
E ninguém mais sabia

(Sabia também que  
Tens um jardim silencioso
Que não se pode conhecer)

Eu te sabia com tudo de mim
Com meu amor, minha falta
Eu te sabia como se visse
A primeira estrela em cima dos
                                   [pinhais
Aldebarã, na luz do meio-dia:
Somente tu e o teu segredo


 Manoel Olavo

29 de junho de 2013

ESTRANHA ROMA TROPICAL


Estranha Roma tropical
Onde gladiadores gingam
E a multidão consagra
Seu jogo de futebol

Estranha Roma tropical
Onde senhores fodem
Escravos às escondidas
E bastardos são maioria

Estranha gente rude
Atrás da imagem que
Decifre o enigma de
Euforia e depreciação

Estranho país sem pai
Procurando por um no
Mito sebastianista ou
No drama do folhetim

Estranha Roma tropical
Rito de dança e suor
Banzo dentro da alma
Tira o gosto de pensar

Estranha Roma tropical
De povo multicor sem
Medo do ridículo, tribo
Imersa, abismo, incêndio

Estranho mito cordial
Onde o coração comanda
O coqueiro que dá coco
No sufoco à beira mar

Estranho arco-íris do caos
Sonhando ser New Jersey
Dores de latinoamérica
No novo cenário em HD

Estranha Roma tropical
Insulfilm na casa grande
Gangues de aventureiros
Sem fé sem lei sem rei

Estranha Roma tropical
Mesquinha e opulenta
Seu amor incomparável
É uma ilusão de ótica


Manoel Olavo

15 de junho de 2013

PAISAGENS


São paisagens diante

Dos meus olhos

Paisagens móveis

Enquanto luzes piscam


Paris Genebra

Meca Bogotá

Vida noturna

Num boulevard distante

E as pedras


Passam civilizações

Estátuas desossadas

O êxtase do sábio

Descobrindo a fórmula

O glossário dos mitos


O lento caminhar

Por ruas de sal e vício

O sacrifício das virgens

Pilhas de corpos

Dizimados pela peste


A morte

Sempre faminta

Seu rugido surdo

A tudo sobreposto


Meu corpo frágil e nu

Estuário de maldições

Rolando entre as bestas

Que destroem monumentos


Meu corpo frágil e nu

Junto do seu

Ao arrepio da lei

E do tempo


Manoel Olavo

12 de junho de 2013

QUANDO CHEGUEI


Quando cheguei a festa tinha acabado:
O coração do texto estava à mostra,
Todos os estilos concluídos.

Quando cheguei eles faziam
Outra coisa, panfleto identitário, formalismo russo, exegese construtivista,  por aí.

Quando cheguei, pra variar,
O melhor da festa já tinha acabado
- Tem sido assim, na minha geração.

Quando cheguei, não havia lágrimas,
Salvo as de minha infância
(Embora a infância, em si, não seja poesia).

Mas as primeiras lágrimas são únicas.
Depois é a tentativa de chorar de novo,
Ou de fazer poesia como da primeira vez.


Manoel Olavo

3 de junho de 2013

FIO DA ADAGA


A vida inteira
Cercado
Pela morte

Inocente
Eu via

Guerras
Reinos
Glórias

Na ilusão
De ganhar

Vi o
    Sangue
        No fio
            Da adaga


Manoel Olavo

31 de maio de 2013

CALOR



Como transformar lava em pedra? É preciso tempo para que o calor dissipe. É natural que seja assim. O processo pode durar centenas de anos. Assim acontece na natureza. Mas não tenho tempo para isso. Minha combustão é imediata. Cada ação me cerca com um tornado de fogo. Só resta a incandescência de emoções desencontradas. Aprendi que o calor tem efeito contagiante. Emoções em fogo alimentam-se uma das outras, atraem labaredas parecidas. Um incêndio de grandes proporções. Minhas opções são limitadas. Ficar calado. Fingir que ignoro. Ou queimar no jorro de emoções a milhares de graus. Sorrir, enquanto viro cinzas. Por instantes, eu abomino a vida e sinto a nostalgia de um estado mineral.

Manoel Olavo

26 de maio de 2013

HELENA



Sou guardião
Dos versos que cintilas.

Recolho-os nas mãos
E no meu pensamento.

Sou náufrago
Cruzando o caos.
Ulisses sem Ítaca.

E tu
Ao derramar cristais de sonho
És minha ilha prometida.

És a musa-aedo
Nereida em mar sombrio
Ninfa Epimélide.

Ao Rochedo do Sono
Eu peço que conceda
Promessa de amor
E a vida, apesar
Da dor e o tempo.

Só há, bem sei, Helena
E és a mais bonita...

Os olhos assombrados
Piscam se tu passas.

Quando tudo terminar
No fim da Teogonia
Ainda te guardarei
No rastro das galáxias extintas.


Manoel Olavo

21 de maio de 2013

LIBERDADE


A cada dia fica evidente
Que o afastamento foi uma medida necessária,
Capaz de trazer ordem à loucura que nos devorava,
Grudada em nossos pés, em nossos corações,
Em nossa voz,
Sem nos deixar viver em paz,
Nem a sós.
Mas só a distância permite tal frieza analítica.
Hoje as cores dos lençóis estão esvanecendo
E cada movimento que faço
Parece me livrar da sua angústia castradora.
Porém, ainda sinto falta da sua presença
Sussurrando os meus pensamentos de volta
E apontando, caso a caso, a minha incompetência
Diante do cotidiano.
É lento o exercício da volta à liberdade.
Talvez seja impossível.

Manoel Olavo

19 de maio de 2013

FÁBULA


Enquanto existir a falha
Que se transforme em fábula

Enquanto existir a trilha
Que se desenhe um mapa

Enquanto vier o emissário
Haja rumor nas coisas despertadas

Rumor das coisas, todas elas
Sussurrando entre fachadas

Chão da ilha cheio de ossadas
Som de palavra inconfessada

Um elo oculto une os elementos
Arruma-os em torno da armada

A memória em pé, a glória amputada
Desconhecida ilha, espuma, vaga

Navegar no curso que segue
O farol apagado na margem oposta

Gelado mar parte a galope
Na crina dos reflexos de prata

A mitologia dos sinais, o cetro
A sina, a nau que se destaca

Nas sendas do território
O mesmo mar liberta e mata

Transitam matéria e tempo
No cais lotado de palavras

Fala-me do mar, do rigor da fala
Evocada, dá-me um pouco de ar

Habita a palavra reduzida, densa
Face contra face, lata torcendo lata

A chama, o ar, o ritmo sem fala
O nome sórdido, o grito dentro d´água

A palavra advinda, contradita
Talhada à faca até ser nada

Além daqui é o risco que separa
Édipo da Esfinge, ou de Jocasta

Manoel Olavo

DIANTE DO DIA

Posso estender o prazo?
Posso apressar o passo?
Tento viver sossegado
Mas tudo fica congelado.
Daqui a pouco, outro sonho
Se desfaz num estilhaço.

Manoel Olavo

17 de maio de 2013

REGOZIJO DE ORFEU


Tão fácil ser desigual
Tão fácil ficar ao léu
Tão difícil ter na voz
O regozijo de Orfeu
Ao ressuscitar Eurídice
Das trevas do Aidoneu

A lira leva o jogral
Do abismo até o céu
Para que possa criar
No voo que percorreu
Algo novo e belo, um verso
Indiscutivelmente meu.

Manoel Olavo

ORFEU


Cansado de dormir e de acordar
Sonhando-te, meu jugo e aspereza
Palpar a superfície da ferida
Colada entre a garganta e o sentimento
Criaste para mim a incerteza
Nos seios de marfim da escultura
Ornada em mil recônditos negrumes
Num verso similar ao que não trouxe
Um novo céu, um mar de incêndio, a lua
Que verso há de cantar o que perdemos?
Não pude te tocar, amor, não pude
Não pude ser nem pássaro nem pluma
Não pude ser nem sândalo nem chuva
Por que sopras assim, ó brisa ambígua?
Acostumada estás a fortaleza
A refletir a sós entre os pinheiros
A combater mastins sobre as escarpas
A ler no corredor no fim do dia
Difusas folhas brancas que tracejam
Escritas formas vagas de desejo
E modos de não ser somente minha
Tu és embriaguez sobre meu dorso
Vinhedo na estação de sol e sombra
Cintila em mim a alma desdobrada
Um anjo há de pairar sobre a calçada
Saudade é despertar vendo-te morta
Se não fosse perder a protegida
Se não guardasse Orfeu a antiga forma
Perdíamos de vez a voz e a lira
Sonhar, mais que viver - eis o que somos

Manoel Olavo

10 de maio de 2013

PINTURA RUPESTRE




Meus olhos tateiam a figura
Pintada na parede de pedra,
A primeira imagem pintada,
Na luz bruxuleante de uma
Caverna oculta. O antílope,
O bisão, o cavalo, o contorno
Da mão, a Vênus de Willendorf.
Meu olhos exploram o começo
De tudo, a raiz do mistério,
Quando os homens fizeram
Falar um mundo que lhes
Intimidava com o seu silêncio. 


Manoel Olavo

3 de maio de 2013

SILÊNCIO


Não há mapa. No entanto, em tudo
Estava à procura de um lar,
A lembrança da primeira casa.

Apolo em seu carro
Queria a vertigem do ser, o céu de asa
Flamejante, o sol, a porta sem aldrava.

Sonhava união, mas nada veio.
Luz excessiva na manhã.
Voo cego. Cristal partido.

Ouça-me: se existe um lar
Ele não está nas coisas.
Impossível romper o véu
Que separa os seres.

Não é conceito
Nem condenação:
É apenas silêncio.

Manoel Olavo

17 de abril de 2013

FALTA


Ávido de tê-la
Eu te vejo a cada
Dia, a cada cena,
Incandescente
Centelha no céu
Caos criando estrela.

Meu amor acende
E se inflama no seu
Flanco. Aos trancos
E barrancos, conto
O tempo, crispado
De sóis e espanto.

É dócil o silêncio
Do amor destruído
Quando adia o lento
Caminho da morte.   
Amor: em seu nome
Vive a minha falta.


Manoel Olavo 

29 de março de 2013

CADA MINUTO


Cada minuto passa
E eu fico mais antigo.
O corpo é um território
Que carrego comigo.

Cada minuto passa
E, indene, a carne fria
Assume a consistência
Do que nem pele tinha.

Cada minuto passa
E a vida cobre a alma
Com camadas. O ar é
Duro, cortado à faca.

Cada minuto passa e
Sou o que não nomeio.
Cada minuto vai
À frente do primeiro.

Cada minuto passa
Eu sinto mas não vejo.
Cada minuto segue
À frente do desejo.

Não há ciência sem
A descida ao inferno.
Não há eterno sem
O istmo do corpo.

Cada minuto passa e
É pele, ausência, istmo,
Corpo, desejo à faca,
Alma em busca de ritmo.

Manoel Olavo

25 de março de 2013

SÃO SEUS OLHOS


São seus olhos: você me vê atrás das aparências
Entende meus sonhos, meus silêncios
Minha dor calada, meu fingir-que-eu-posso

Quero de você essa virtude rara
De me fazer maior do que eu sou
De me levar além do que mereço

Por isso te amo e ajo como se não houvesse
O mundo à nossa volta; e só vejo você
Seu olhar, meu guia, estrela polar, Órion

Seu corpo de marfim, o toque de calor
Que me incandesce. Em suas mãos, em sua
Pele clara, eu voo entrecortado de gaivotas.

Viajo na maré de luz, numa revoada
Me sinto como um rei num madrigal
De carícias e posso ser feliz porque te amo

Manoel Olavo

METAPOEMA III



                                               As coisas
                                               Emitem luz

                                 Ignoram distâncias

                                           Estão no meu jardim
                                                  E na
                                                          Macedônia

               As coisas
               São doces
               Prestimosas
               E votivas

                                               As coisas rentes
                                               Ferem o real
                                               As capturadas
                                               Morrem

As coisas revelam
O pacto entre
O divino e o sensual

                                    As coisas
                                         Todas elas
                                           Carregam
                                                  Um pouco
                                                          De mim

Manoel Olavo

15 de março de 2013

EM QUALQUER PARTE


Quando eu era criança
Dormia num
Colchão de palha
Com cheiro de urina
E sonhava com o dia
Em que todos seriam amenos
E diriam coisas verdadeiras
Eu me sentia só
Achava que o mal
Era ter nascido longe
Na beira do pantanal
Junto à grosseria
Dos peões de fazenda
Dos garimpeiros armados
De mulheres que se pintavam
Pra missa de domingo
E telefonavam umas pras outras
Contando os podres
De maridos e filhos
E gente que se visitava
Todo dia à mesma hora
E padres boçais
Que puxavam a orelha
Dos meninos no colégio
E primos boçais
Que puxavam o cabelo
Dos meninos em casa
E o Deus de minha mãe
Que ela disse que punia
E a mãe de minha mãe
Que ela disse que era santa
Mas era louca, isto sim
De noite ficava abraçada
À minha mãe e outros filhos
Com a luz do lampião apagada
Porque via fantasmas cercando
A casa na beira do rio Coxipó
Todos ficavam em silêncio
Rezando pras almas irem embora
Foi minha avó quem deu à minha mãe
O nome de outra filha morta
E lhe disse que elas eram
A mesma pessoa
E eu tive medo disso tudo
E chorei e quis
Fugir dali sair do meio
Daquela gente assustadora
Eu quis viver como
Os personagens dos livros
Mas tive de aprender
A viver calado e só
Olhando pra cima ou pra dentro
Chorando em silêncio
Porque homem não chora
Eu subia em cima do telhado
Pra escapar daquilo
E lia histórias
De gente calma
Com enredo admissível
Mais tarde eu viajei
Vim ao Rio de Janeiro
E vi gente que ria sem medo
E bebia e fumava e ia à praia
E falava de cinema e de teatro
E parecia saber de si e ensinar como
Então eu decidi morar no Rio
Vim estudar e nunca mais voltei
Mas vi que era tudo mentira
Que a gente má e louca
Existe em toda parte
É mais real do que os mitos
Que não falam a seu respeito
E a gente branda está
Onde se possa vê-la
Hoje estou em pedaços
E penso no que sobrou
Após tanto tempo vivo
Há muitas léguas
Da cidade que deixei
Há muito tempo
Da cidade que deixei
E que pulsa em mim
Em desabridos viços
Mas eu fiquei tão só comigo
E sei que a gente má é má
Em qualquer parte
E a dor atualiza o tempo
De viver entre essa gente
Em toda cidade
Onde o sol se por.

Manoel Olavo

16 de fevereiro de 2013

VERSO OU REVERSO


Verso ou reverso              Verso ou reverso
Tudo é segredo                Tudo é espelho

Na outra margem              No lado avesso
Arte é miragem                 Arte é endereço


Manoel Olavo

12 de fevereiro de 2013

O CÍRCULO VAZIO



I

Que gesto garante
A sobrevivência
Do mito?

Buscar
Entre gente núbil
O contorno (inútil)
Do ente cobiçado?

O círculo vazio
Do amor
Feito ausência?

Ausência
Cujo nome
É medo?

Em tudo
A sede de contato
Um exílio

Em tudo
O medo de morrer

II

Antes ceder
A vez
Ao belo
         
Conter
A solidão
Que dói
No ventre

A alma
Que se tranca
Na sala
Escancarada

III

De noite
Um grupo
De palavras
Não se rende

Estrada
Régia de
Antigos viajantes

Eu lhes peço calma
Enquanto traço o
Círculo vazio

A forma vazia
Do ente traduzido

A forma oblíqua
Do ente enunciado

A forma fugaz
De algo que
Não
Basta

Manoel Olavo

10 de fevereiro de 2013

CADA VERSO



Escrevo cada verso

Certo do que desejo.

O mesmo verso vai

E volta, quase nunca

O mesmo, raramente

O primeiro. Plantio,

Colheita, nada disso

Abrevia o processo.

(Despojo que não morre)

Recomeço. Um sentido

Diverso leva o verso
              
Na mão que o escreve.


Manoel Olavo

3 de fevereiro de 2013

RAPAZ



Foi-se o tempo das histórias, rapaz,
Das longas conversas na mesa de bar
Da esperança de ser o que não é

Se pelo menos, rapaz,
Houvesse alguém para conversar

Todos, porém, já foram embora
Ou parecem terrivelmente ocupados

À esta altura do campeonato, rapaz,
Nem a si mesmo este seu riso convence


Manoel Olavo

16 de janeiro de 2013

POR DO SOL




Num salto mortal

Luz dourada

Entre os edifícios

Na cidade feita

De metal e vidro

Meu corpo em cacos

Cai sobre a calçada

BLAM!

Mas ninguém se toca


Manoel Olavo

VENTO ELÍSIO

Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...