29 de junho de 2010

MÉTODO


Amar o abissal
Amar o incriado

Buscar o perdido
O raro, o extinto

É um modo sutil
De deter a carne

De ficar a sós
No jardim das coisas

De tirar poesia
De dentro delas

De encontrar beleza
Onde nada havia

Manoel Olavo

24 de junho de 2010

ODALISCA

Odalisca, seus olhos pareciam tão cansados. Você não é quem eu pensava ser. Talvez nunca tenha sido. Era engano. Só tinha o peso enorme que você carregava. Tanta coisa pra dizer, tanta coisa pra mostrar, tanto cuidado com o que os outros pensavam. Tudo falso. Muita coisa aparente, mas nada por debaixo. Só fúria e silêncio.
Odalisca, você se perdeu. Ficou enterrada numa porção de coisas de que não precisava, perdida numa pilha de produtos. Sapatos demais. Tentou ser culta, jovem, glam, hype, fashion, clean, up-to-date, descolada, enfant terrible, emergente, marginal, viciada, fin-de-siècle, clubber, gata, je suis desolée, mas não, obrigado, é desespero demais, é mentira demais, essa noite não termina. Nada em você é de verdade, salvo o encanto das palavras e a imagem se movendo ávida. Pobre Odalisca, quis tanta coisa, mas se perdeu no caminho de volta. Pouco a lhe dizer. Odalisca, que fizeram com você?

Manoel Olavo

21 de junho de 2010

TEOREMA OCULTO

Acaso
Vem do céu
Uma resposta?

O corpo é meu
E a alma retorcida

A criação
Uma paródia submissa

Do limite do gozo
À herança da criatura
Faz-se a distinção
Entre o nada
E coisa nenhuma

Manoel Olavo

HORAS SUAVES


Em horas suaves
- Quantas?
Enfim a união
Entre o que foi
E o que se espera

O olhar liberto
Espalha-se em
Mil direções

A paixão morre
Mas breve
Renasce

A vida segue
Seu curso
Inapelavelmente

Há êxtase
Num largo deserto
Os mortos compõem
Sua paisagem

Ao seu redor
Silenciado o caos
Surge uma
Harmonia provisória

Na palavra
Isenta e sólida
No olhar
Que espreita
A impossível paz
Dos astros

Manoel Olavo

18 de junho de 2010

TOQUE



Um gesto de mão
Um toque bem leve

Nosso nome, a rima
Dura história de vida

Não consigo imaginar
Nada depois de você

Manoel Olavo

17 de junho de 2010

DORME AMADA


Dorme, amada
É cedo ainda
Seus olhos devem repousar

Dorme, amada
Enquanto velo
Para que não tenha medo
Para que seu corpo não encontre dor
E fique junto do meu corpo

Dorme, amada
É cedo ainda
A ternura nos embala
Um arremedo de sol
Entra pela fresta
Tudo está em nós
E brilha

Meus olhos semicerrados vêem
A luz se derramando em sua pele

Dorme amada
É cedo ainda
Antes dos dias maus
Das noites a sós, das palavras duras
Antes que as memórias sumam ou se calem

Dorme, amada
Pois zombamos
De que, um dia, algo nos desfaça

Pensos no céu
Aves azuis, nós dois
(um único ser
indiviso e ímpar)
Rodamos e seguimos juntos
Dentro da manhã que rompe a treva

Manoel Olavo

10 de junho de 2010

NOSSO SONHO JUNTO

Nosso sonho junto, permitido,
Na brisa do poema que sonhamos

Nosso sonho junto, traduzido,
No gosto deste verso que beijamos

Meu coração, pássaro encantado
Pelo vento sutil de tuas palavras

Meu coração triste, tão cansado
Sonha te amar no tempo que se afasta

Minha alma vai te encontrar
Seguindo a flor que nasce aonde andas

Minha alma, o lírio abraça o mar
Na curva de um beijo dado na varanda

Um dia os deuses vão louvar
Tua beleza inteira em verso e graça

E farão nosso sonho cantar
No tempo em que o tempo não passa


Manoel Olavo

8 de junho de 2010

A PALAVRA DE ELISA



Então, ela lhe respondeu que não o amava mais. E, como em outros momentos de sua vida, ele não sabia o que dizer. Talvez ela buscasse um triunfo surdo, um choque, usufruir da dor que nele agora eclodia. O impacto pode ser uma estratégia, ela queria desnorteá-lo. Ele ficou em silêncio, respirou. Lentamente, com passos comedidos, caminhou até a mesa e pôs água num copo. Bebeu. Eram segundos preciosos, precisava pensar antes de agir. De novo respirou. Entranhou-se em sua própria carne e desfolhou todas as camadas da sua alma em busca de uma frase, de uma palavra que servisse como resposta: a palavra para prender Elisa. Não encontrou nada. Não havia palavras, frases, fonemas, nem tolices sentimentais. Era apenas aquela mulher diante dele e sua infinita hesitação.
Tentou tornar-se sábio, prudente, cínico o bastante para sorrir, pedir perdão, gritar como um alucinado, atirar-se a seus pés, pular pela janela, enfim, fazer uma dessas coisas conforme manda o roteiro de um coração dilacerado, jorrando uma cascata de sangue e reminiscências. Conhecia tantos truques mas, naquela hora, não se lembrou de nenhum. Apenas rumorejava. Por vezes, se prometia. Naquela noite, em silêncio, se perdeu. Ela se foi e ele sequer tinha pensado em perdê-la.
Quando alguém se dá a conhecer? Primeiro, vêm os sinais: a dança ritual, aparição de indícios intrigantes; sorrir, sorrir bastante; trocar olhares, olhar fixamente; aproximar o corpo, um meio que debruçar-se sobre o outro; um tom de verdade e exaltação que percorre o rosto e a voz de quem fala; um frêmito, uma vibração difícil de descrever; um sussurro, como que dizendo: “me aceite, estou sendo o mais perto possível de mim para você”. Já tivera momentos assim, antes, mas, de fato, eles não lhe interessavam. Eram apenas um prelúdio para o verdadeiro encontro, para o que vinha depois, na cama, quando os corpos se refestelam após se amar, os rostos se aproximam, a voz se enche de ternura, o espírito promete mostrar sua definitiva intimidade e beleza. O instante em que as mãos se tocam, em que se ouve a matéria triunfante e a alma resfolegar. Nesta hora, assim despidos e capazes de delicadeza, eles eram homem e mulher enquanto a multidão desaparece e o momento se torna um calmo e morno regaço.
Olhando nos olhos de Elisa, ele lhe perguntou: “por que levamos tanto tempo para chegar até aqui?” Ela se lembra de como o ar mudava de cor e o sol dourava quando ela o via; e ele se lembra de como a visão da curva de seus lábios contra a luz do céu parecia cintilar. Declarava seu amor a ela: madressilva perdida, quanto tempo eu te esperei; mater dolorosa, nosso amor virá ao mundo entre torvelinho e brisa, dispersando as brumas da solidão. Encontro em você a medida certa para recostar minha cabeça cansada, o meu coração ferido. Vontade de entrar em você e me perder. Oxalá encontre um dia de repouso no azul de seus olhos baços.
Antes da cama, antes dos corpos se despirem, antes de qualquer coisa, tivera encontros fortuitos com Elisa, quando ainda mal a conhecia, e gostara de sua sedução envergonhada. Podia se fazer ouvir por uma mulher quase uma adolescente, e conseguia entendê-la excepcionalmente bem, apesar de nem sempre gostar do que ouvia - mas era tudo sempre muito sincero entre eles. Havia ternura e arrogância nela, feito mel e âmbar, e promessas de comunhão. Gostou dela, de seu jeito desengonçado de ser. Modos de menina. Vinte anos a menos que ele. Vestida como numa capa de revista Fashion. Um exagero. Um epítome da modernidade, bordada em cores cítricas, cabelos curtos e louros, olhos azuis e míopes, desejo louco de mostrar-se erudita e definitiva. Quase um incesto, ou um conto da carochinha: era só escolher.
Naquela noite, encontraram-se a sós e fugiram para um quarto nos fundos da festa que aquela hora quase terminava, conversaram e riram com a intimidade peculiar dos amantes que ainda não se possuíram, e quando Elisa lhe disse, após um instante de silêncio recíproco: “e agora?” – ele lhe respondeu, sem perder a deixa: “agora, nós nos beijamos e a cena escurece”. Desejo. Nesta noite, ele aprendeu o caminho até o seu quarto, no terceiro andar de um velho prédio sem elevador, perto de uma praça bucólica, meio desconhecida, atrás da Rua das Laranjeiras, onde crianças brincavam, aves zuniam, e velhos remoíam seus dias e dores em silêncio. Ela morava numa espécie de sótão, anexo à casa dos pais. Um quarto escuro e lúgubre, cheio de almofadas vermelhas, centenas de livros, discos de rock e várias bonecas e fotos da Betty Boop. Um mausoléu pop. Havia algo de transgressor naquilo, mas ele sequer desconfiava, nem saberia dizer o quê. Ela, certamente, o usufruía.
Qual é a medida do bom gozo? Era poder agarrá-la por trás, e ela pedia, e ficar olhando para sua nuca, para a linha incerta de seu curto cabelo louro, para seu corpo pálido e ossudo, que se arqueava e se contorcia, ia e voltava, para os seios pequenos, de mamilos rosados, e a curva suave de suas costas, seu olhar esgazeado, e o modo como ela arfava e gemia, e sorver o cheiro agridoce que se lhe escapava quando ela gozava, em meio a gritos de não mais poder. Qual é a medida do mistério? Era estar ali, sempre, de novo, todo dia, mesmo quando o tempo e a agenda não permitiam, inventando desculpas e pretextos, subindo as escadas como um condenado rumo ao cadafalso, por causa dela, ele tinha de voltar para encontrá-la, com seu sorriso adolescente e os olhos assustados de um profundo azul.
É dolente o som do desapego. Ela gostava de ficar perto dele. Deitava-se ao seu lado, após gozarem, pegava sua mão e passava sobre sua barriga magra, dizendo: “meu corpo é real”. Aceno. Ele podia quase auscultá-la, desvendava suas feridas e via quanto desespero havia em sua pretensão. Era mentira, tanta, que ela ia ficando mais distante à medida que ele a decifrava, a melodia da voz de Elisa se distanciava, os sons vindos da rua não mais entravam no quarto, eram refletidos feito cores decompostas por um prisma e era o silêncio decompondo as mentiras dela.
De novo, como sempre, e por hora, era tempo de acordar. Seus lábios ressecados pediam um gole d’água. Passar a mão pelos cabelos, lavar o rosto com água fria, tentar livrar-se do passado, que, àquela hora, ressurgia em imagens congeladas à sua frente, como nobres sentados em cadeiras de pinho, numa atmosfera solene de acerto de contas. Fuzilaria, acordes desafinados, verdades nunca ditas, distância, solidão, um movimento frenético de pernas e passos que iam e vinham, que murmuravam, choravam, riam, e a velha casa que ficava sempre aberta, atravessada por um largo e sujo corredor, onde passavam os personagens do filme mal decupado de sua memória.
Levantou-se e foi até a pia, lutando para despertar. As imagens da noite se dissipavam como orvalho na manhã. Voltou para a cama, onde Elisa permanecera, e viu que ela respirava com dificuldade enquanto dormia, aninhada como uma princesa que adormece após a foda. Cheiro de adolescente e desordem nos lençóis. Quente. Não resistiu, voltou para a cama, deitou-se um pouco mais junto às suas sardas, no calor do cobertor onde se enroscavam. Sua alma desprotegida se aqueceu no sono de Elisa. Numa mancha do teto embolorado, uma gota d’água insistia em se formar.
Ele a desejou muitas vezes mais. O tempo passou, mais e mais vezes com Elisa, de volta ao mausoléu, ela se mostrando mutável, única, encantadora, a murmurar tão suave e decidida, conhecimento, afagos, risos, ele enternecido, achando-a capaz de encontrar o argumento definitivo para aplacar a sua dor. Ele a possuiu, às vezes com ardor, às vezes com fastio, derreteu-se nela em dezenas de litros. Lembrou-se dela nos dias de distância. Sorveu e cheirou seu aroma, renovou o seu regaço, aprendeu seu agridoce sabor. Por fim, viu seu terno e baço olhar azul rasgar a cena noturna do quarto onde ele vazio ficava.
Um dia, ele percebeu que perdia a figura clara de Elisa. Qual era a palavra certa para prender Elisa? Desde então, ela se tornava muitas e ele a queria mais, então ele ficou sem saída dentro do labirinto. Vertigem implacável, que não podia acompanhar. As cenas eram dela, os urros eram dela, os silêncios eram maus, mas não havia palavras. “Eu a perdi”, ele pensava. “Ela está indo embora”. Qual era a palavra dela? A palavra de Elisa? A nave e os viajantes ficaram à deriva no mar dos sonhos de Elisa. Perdeu-se a chave e o rumo, a ilusão borbulhando, o tempo passando, e ele sequer sabia de onde falar com ela. Miríade de luz no espelho. Rastro. Elisa se multiplicando à sua frente, em trilhas que adornavam o infinito. Ele teve medo disso, tanto, ficou tão desatinado, que um dia se encheu de coragem, e perguntou se ela ainda o amava.

Manoel Olavo

7 de junho de 2010

PÁTRIA



Já se fez bastante
Um tipo de poema
Com cara de tese
De texto antropológico

Malefício semiótico
Que a língua não cala
Duro enclave
Na mesa dos signos

Debaixo dela um
Cão faminto gane

A pátria rejeita
A intenção de afago
Balança a pança
E despreza o processo civilizatório

Assim
Eu penso
Que as palavras escondem
Que um festim nos assola
Que não faz diferença
Que não houve catequese mas evisceração
Que até os mais espertos deviam ser iguais
Que é foda ser barroco tropical globalizado
Que um coração tresmalhado não acha rebanho
Que a mulata bossa nova caiu no hully gully
Que mélange não implica numa regra universal
Que precisa haver grandeza norma mérito castigo
Que o boi pasta montes capões vegetação rasteira
Que o mugido dele é santo obstinadamente boi
Que nos perdemos entre miséria e mistificação
Que é alegre a gente pobre ao arrepio da lei amontoada
Que o capitão do mato preto forro caça pretos fugidos
Que o índio conta histórias de missionário em perdidas Lisboas
Que dói a imperfeita geometria teatro de sombras rapina carnaval
Que o sangue jorra feito alicerce sinfonia de barbárie e civilização

Manoel Olavo

3 de junho de 2010

EMBORA

Seu rosto não é meu

Mas eu relevo. Seu

Corpo não vem

Mas pouco importa.

Embora seus olhos

Não me fitem único,

Os dias não sejam bons,

E você de fato não exista,

Nem eu possa tocar suas

Mãos sob a mesa,

Embora eu nem

Ao menos fale nisso,

Disfarce, cantarole,

Ignore sua ausência,

Embora essa gente nula,

Morna, incompetente,

Embora tudo esteja aqui

E não me baste, embora

O dia não traga a boa

Nova, que seria vê-la,

Eu respiro fundo, me calo,

Relativizo a dor e os fatos,

Pressinto a dádiva

E levo seu olhar adiante.


Manoel Olavo

1 de junho de 2010

POEMA VERMELHO



sangue da fruta vermelha

rubro canto de guerra

lábio coração amora

Carmen carmim boca de cena

dressed to kill rubi hemorragia

paixão falésia Roma extinta

na rubra cor

de carne e ira


Manoel Olavo

POEMA AZUL


Eu quero um poema azul
Azul das brumas do mar
Azul matizes do céu
Azul dos mares do sul

Azul da íris de alguns
Azul poeira estelar
Azul pincel de Monet
Dos fulgores na restinga

Eu quero um poema azul
Claro e fresco como a tinta
Da mão na caneta azul
Que escreve um azul-poema

Haverá poesia em mim
Sem passado ou influência?
Como no primeiro dia:
Azul, azul, azul, azul...?

Serei cantor das antigas
Ou um DJ com blue-tooth?
Ou o pobre trovador
Do azul que vem de você?

Manoel Olavo

POEMA BRANCO



Branco

Um

Infinito

Raio

De

Luz



Manoel Olavo

VENTO ELÍSIO

Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...