29 de julho de 2011

CALÇADA

      
      Caminhar pela calçada esburacada de cimento, pedras portuguesas e lembranças, cercado pelo tráfego cada vez mais hostil da grande cidade. Sol a pino. As pessoas parecem sobrar nesse cenário. É preciso lutar por cada centímetro de espaço, contra máquinas mais fortes, contra transeuntes mais rápidos, contra mendigos, vendedores ambulantes, bicicletas em cima da calçada.
       Caminhar num ritmo que lhe é próprio, é pé ante pé, mas é efeito da cidade, da sua ânsia, do fôlego de milhões fluindo-lhe nas veias, e as buzinas e sirenes do seu lado. Na esquina observar que um galho do hibisco deu a volta por cima do muro da casa, e flores vermelhas gotejam na calçada, formando um passadiço rubro, no qual as flores caídas ressecam-se ao sol e se desfazem com a pisada das pessoas. Mas não há tempo para metáforas de flores e cidades, nem para metáforas sobre caminhantes solitários. O mundo anda muito refratário a certo tipo de lirismo.
       Não será estranho, porém, admitir que, a cada passo dado, o mundo ao redor do caminhante se congela em sua tridimensionalidade e uma multidão de fatos vai se dissipando, enquanto outra dimensão paralela surge de seu distraído passo a passo. Assim, cada pensamento, palavra ou gesto do caminhante exprime uma escolha que elimina as demais possibilidades e molda um universo complexo ao seu redor. Agir de determinada maneira é criar um mundo fechado de causas e efeitos. A cada decisão tomada, cada simples escolha de direção, inúmeras realidades paralelas deixarão de existir e outras, inéditas,  nascerão. Há um universo novo em cada movimento, lembrança ou encontro que a vida lhe oferecer. O caminhante funda firmamentos, enquanto pisa em hibiscos. Cabe-lhe assumir essa atividade fundadora. Não é poesia, é uma evidência matemática.

Manoel Olavo

17 de julho de 2011

A LEMBRANÇA DO NOSSO AMOR



A lembrança do nosso amor
É um pássaro dentro
De casa a dar de cara
No vidro da janela

De noite vi o seu olhar
Enquanto você dormia
Mas você pássaro sonhando
Não me reconhecia

De manhã vi
A nuvem branca
Ficar laranja e azul
Num único segundo

Depois cansado quis saber
De você mas não sabia
Das nuvens de pássaros
Nem de gestos largos

Você deve voltar outras
Vezes. Seu voo absorto
Vai traçar um arco sobre
O cristal quebrado

A lembrança do nosso amor
É um pássaro dentro
De casa a dar de cara
No vidro da janela

Manoel Olavo

SONHO


Surreal, subtraída
A mente
Erra

Matéria flébil
Volúpia 
Alada

O sonho conduz
Teu ser na
Brisa

Ao porto além
Do corpo que
Vaga 

Manoel Olavo

16 de julho de 2011

VENERO-TE A FLOR



Quem te incendiou a carnadura?
Quem te fez vergar antes de possuir-te
E te pôs de lado quando de frente vinhas?
Ao teu encontro eu fui diversas vezes
Em noites de gozar veraz e cego

Pois te nomeei
Minha amante inteira
Ao lume dos meus olhos
És diva perfeita
Que a todas suplanta
Não ouse cantar
Alguma outra voz
Que não seja a tua

Sorvo o néctar que tu jorras
E meu dorso ensopa
Venero-te a flor
Enquanto ela se liquefaz
Em minha boca
Minha musa
De carnadura avantajada
De ancas abissais
E olhos sombrios
Armadilha consentida
À qual me entrego

Eu te amo em trajes de fidalgo
Ao sabor de nosso enlevo
E contigo permaneço
Antes que a voragem
Do tempo célere desfaça
A trama do destino
Que foi nossa

Manoel Olavo

15 de julho de 2011

DEIXA SOPRAR



Deixa soprar
O vento da memória

Eco do que passou

Deixa soprar
O vento da memória

Sem se ligar
No seu rumor

A vida prossegue
Fabricando outra

Despedaçada flor

Deixa soprar
O vento da memória

Até que o tempo seque
O sangue que jorrou

Manoel Olavo

EU VI AMOR PASSAR



Eu vi amor passar
Junto à janela baça

Amor de asas
Cujo voo é engano

Eu vi amor voar
Sobre montanhas

Acima de mim
Ele vigiava

O amor fugiu? Partiu
Sem mais aquela?

Não importa: vieste
E isto me basta

Se eu tento esquecer
Volto à mesma estrada

Vislumbro teu olhar
Avesso às minhas costas

Até que me encontres
Nas listras do desejo

- Eu vi amor passar
Ou eram as nuvens?

Manoel Olavo

O CÍRCULO VAZIO



I

Que gesto garante
A sobrevivência
Do mito?

Buscar
Entre gente núbil
O contorno (inútil)
Do ente cobiçado?

O círculo vazio
Do amor
Feito ausência?

Ausência
Cujo nome
É medo?

Em tudo
A sede de contato
Em tudo um exílio

Em tudo
O medo de morrer

II

Antes ceder
A vez
Ao belo
         
Conter
Orgulho
Afrontar

A solidão
Que dói
No ventre

A alma
Que se tranca
Na sala
Escancarada

III

De noite
Um grupo
De palavras
Não se rende

Estrada
Régia de
Antigos viajantes

Eu lhes peço calma
Enquanto traço o
Círculo vazio

A forma vazia
Do ente traduzido

A forma oblíqua
Do ente enunciado

A forma fugaz
De algo que
Não
Basta

Manoel Olavo

13 de julho de 2011

E VIERAM TANTOS



E vieram tantos
Fatos que jamais
Sonhara: dormir
Num catre, morrer
Sozinho, captar
As vozes do além,
Amar nebulosas,
Ver um anjo no
Espaldar ou sangue
Na faca. Lembrar
Da face imprudente
Quando não sabia
Nenhuma das coisas
Que já desvendou.
Dentro de você
Era  Prometeu,
Ressonante sombra,
Pedra contra pedra,
Hoje menos pétrea,
Mas ainda farpa
Ao toque de alguém.

Manoel Olavo

A VIDA INTEIRA


                                  “Omnes feriunt. Ultima necat”.


A vida inteira
Cercado pela morte
Ofuscado eu via

Águas águas
Aves mortas
Sinais esparsos

A vida inteira
Cercado pela morte
Eu evitei
Tamanha altura

Amar-te e morrer
O que importa
É poder olhar-te

São anjos?
Legiões?

Não. São pássaros
Batendo as asas
No último suspiro.

Manoel Olavo

12 de julho de 2011

UTI POSSIDETIS


Nós
Seremos mar
Depois das gôndolas

Nadamos por vergéis
Por baías claras marés-cheias

Risco no céu
Mar que rodopia
Dois corcéis na água

Um toque e
Sua pele reluz

Olhar que destila
Incrédulas sereias

Emoção de náufrago
Diante do oceano

Do amor à solta

Nós dois
Presas do mar
Engolfando espumas

O penhasco
Derruba corais
No fundo transparente

Nós
Seremos mar
Depois das gôndolas

Manoel Olavo

AMO EM VOCÊ

Amo em você
Esse desespero
Essa dor mal-disfarçada

O par de olhos fundos e percucientes
A inquietação calada o desejo de abraçar
                                                     [o mundo

Amo em você
Seus leões famintos
O salto sobre o abismo
O gosto de explorar zonas inabitadas
A certeza de não estar na vida a passeio

Amo em você
O riso que vira a realidade pelo avesso
E faz de espelho o que foi enigma

Amo em você
Essa intensidade
A ternura disfarçada
O sonho de voar além das copas

A coragem de ser
Ao mesmo tempo
Arco, alvo, braço e seta

Helena: 
Hei de lutar para lhe reter
Entre feéricas palavras

Mas a beleza que você traz
(Arco do Triunfo) fica intocada

E o verbo inútil se rende
Ante o esforço de dizê-la.

Manoel Olavo

3 de julho de 2011

MUSA ENTRE PAREDES



Esforço de autor
Afinal vencido
Abandona exausto
O teu corpo alhures
E o poema despe-se.

No entanto, voltas.
Vasta e desigual
É tua medida.
A lira incompleta
Noite afora ecoa.

Fascinante enigma
Ainda persiste.
As chamas se elevam.
Som de madressilva
Toca enquanto danças.

Bailarina hipnótica,
Par de olhos rútilos,
Tez mutante, naja
De dedos em riste:
É triste te amar.

Estilete na alma,
Pés sobre o abismo:
Vem de ti o signo
Corrosivo, atroz
De amantes na forca.

Trilhas bifurcadas,
Luz, céu, raio, túmulo,
Primícias constantes,
Ou talvez eu mesmo
Em fêmea tornado.

Esboço de amor,
De morte ou de fuga
Consentida, teu
Seio me oferece
Dor, abismo e cio.

Assim vais, desenho
Vago entre paredes:
Ziguezagueando
Através das pedras
De muros sem fim.

Criatura tênue,
Atravessa sólidos,
Passa por paredes,
Rompe celas que
Fiz mas esqueci.

Em meio aos escombros
Sorris e dos lábios
Leve brisa sopra.
Hoje, desatino.
Amanhã, silêncio.

Leva-me daqui,
Musa decomposta,
Num leito de rio
Vital onde minha
Alma sem ti sofre.

Despudor de ser
Fraco e ter perdido
Os tempos, os dias,
As vidas passadas,
Os amores últimos.

Pois musa te chamas:
A pintura eterna
Recriou teu mundo
E em questão de horas
Ele adormeceu.

Manoel Olavo

VEM UM PÁSSARO NA DETIDA HORA


Se ele veio?

Quis chegar
Na detida hora

Passar além
De um fluxo
De pássaro

Passar além
Da detida hora

Há bocas e bocas de pássaro:
Bocas abertas imensas absurdas
Há noites e noites de pássaro
(a boca escancarada)
Teu leito mais
Eu só

Corre o rio
(remanso ou caudal?)
Transparente belo viscoso
Jorra um curso d água
Que dele sai
E nos ensopa
Vem
           desejo
                      que cintila!
O nexo
(de mim a ti)
Que úmido se fez
Não existe mais

Erosão de vôo
    E queda
      Livre

Pássarorrompante
Debate-se na água
             
Vem um pássaro
Na detida hora
Sobrevoa-nos
E vai-se embora

Há bocas escancaradas
Em teu leito só
Eu mais

Manoel Olavo

2 de julho de 2011

FÁBULA



Enquanto existir a falha
Que se transforme em fábula

Enquanto partir a revoada
Haja rumor nas coisas despertadas

Rumor nas coisas, todas elas
Sussurrando entre fachadas

Transitam matéria e tempo
No golfo repleto de palavras

Gelado mar parte a galope
Por cima dos reflexos de prata

A memória de pé, glória amputada
Desabitada ilha, estreito, vaga

Nas lendas do território
O mesmo sol condena e salva

Enquanto eu morro lentamente
No silêncio da noite soletrada

Fala-me do mar, do sabor da
Frase evocada, dá-me algum ar

Ocupa a palavra reduzida, densa
Face contra face, lata amassando lata

A brasa, a gota, o ritmo da fala
O nome sujo, o pacto sem asa

A palavra advinda, contradita
Talhada à faca até ser nada

Além daqui é o traço que separa
Édipo da Esfinge, ou de Jocasta

VENTO ELÍSIO

Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...