23 de dezembro de 2022

VENTO ELÍSIO



Lento e minucioso meu sopro caminha

Por seu corpo nu pele branca à mostra.

Eu, Elísio, vento soprando na fresta

Inspeciono cada ponto oculto.

Cada impressão deste contato

Fica comigo na memória

Da passagem do corpo pelo vento.

Pra sobreviver, o sopro vira verbo,

O esboço visual vira palavra.

Por isso não desprezo o verso,

Seu efeito evocativo. Louvo

Assim este esforço de som

E sentido, sintaxe da permanência,

Capaz de retê-la, relevo e pele nua,

Arte e efeito de habitar o meu

Domínio, embora comigo não 

Esteja, nem sequer consinta.


ENVOI

Lento e minucioso meu sopro caminha

Por seu corpo nu pele branca à mostra.

Não ouso abandoná-la aos elementos 

Antes tê-la em verso que perdida no vento.


Manoel Olavo

20 de novembro de 2022

CADA MINUTO PASSA


Cada minuto passa

E fico mais antigo.

O corpo é território

Que levo comigo.


Cada minuto passa

E, indene, a carne fria

Tem a consistência

Do que nem pele tinha.


Cada minuto passa

E falta o ar que a alma

Respira. O tempo é

Duro, cortado à faca.


Cada minuto passa

Sou quem não nomeio.

Cada minuto vai

Diante do primeiro.


Cada minuto passa

E sinto mas não vejo.

Cada minuto segue

À frente do desejo.


Não há ciência sem

A descida ao inferno.

Nem há eterno sem

O istmo do corpo.


Cada minuto passa e

É pele, ciência, istmo,

Corpo, desejo à faca,

Alma querendo ritmo.


Manoel Olavo

8 de outubro de 2021

HOUVE AMOR

 Houve amor, ela não quis

Sou eu que admito a derrota

Amar é isso, a mais alta resignação

A um dia como este, segue-se a noite


Me fale de amor

Refém do vazio

Retrato sedento,

Antevéspera duma execução


Virá um crepúsculo sanguíneo 

Cobrindo tudo

Depois, a escuridão

É só o que sabemos


Vida, vida, eu te quero inteira 

Teu lugar é aqui, não nas alturas

Ouve o rumor dos presságios

Buscando amor na cena de outra vida


Manoel Olavo

22 de setembro de 2021

AMOR DA TUA MANEIRA



A vontade de te ver é tanta

Que, a cada palavra trocada,

Eu penso que te descubro.


Que nada. Teu ar, brisa rainha,

Sempre sopra em outra direção

(Chama que acende teu mistério).


Prisioneiro sou de teu pensar,

De teu riso, teu olhar de lado.

No entanto, sou livre para voar.


Tu não emprestas tua beleza, folha

Proibida. Nada teu se oferece como

Pássaro óbvio que se possa capturar.


Sigo pegadas finas, enigmas de neve e sal,

Palavras cálidas, ácidas, de arrepio. A um só

Tempo, és todas e és única. Lava de vulcão.


Teu passo queima se me aproximo.

Então me deito na grama e espero.

Colho tuas flores. Por ti me despetalo.


Serenamente encantado, aguardo

A intensidade do teu beijo e o mar

De água clara do teu corpo nu.


Sinto-me feliz à tua espera, ouvindo

Com calma o que revela teu silêncio.

Depois de tudo te amarei como se,


De tanto esperar, já tivesse chegado

Há muito tempo. Corpo e alma de

Aprendiz, quero o amor da tua maneira.


Manoel Olavo

17 de setembro de 2021

INVERNO



Inverno

Na dureza das palavras


Inverno

No breviário das sombras


Inverno

No equilíbrio das somas


Inverno 

Lendo os próprios pensamentos


Inverno 

De silêncio e comedimento 


A morte

No mergulho tátil das águas 


Sem eu

Ser desfeito menos um


A morte

Finalmente estar sozinho


Na noite

Fria de solidão vibrando


Manoel Olavo

VIGÍLIA




Ele caminha pela estrada.

Longe, o ponto de chegada

Fica além do que se avista.

Em sua direção vem

Putas, contrabandistas,

Fantasmas, viúvas abissais de costas nuas,

Guardas-civis, coachs, youtubers, heróis de araque.

Conforme caminha, e segue,

Mais longe

Aquilo fica.

Não, não basta caminhar.

É preciso mais.

É preciso torcer para que não chova,

É preciso ter alguma companhia,

É preciso sorrir para os passantes,

Ficar de pé, rabiscar numa pedra,

Enfrentar terrores, tremores, tempestades. 

É preciso partir, partir sempre.

Fazer laços e depois rompê-los.

É preciso se bastar quando se está cansado,

Derrotado, farto de tudo,

Quando o sol queima

E não há consolo.

É preciso cuidar de si,

Sem deixar os outros.

Ele caminha pela estrada

A duras penas.

A cada passo dado,

O ponto de chegada

Mais longe fica.

(A proximidade afasta

A hora prometida).

No entanto,

A um possível encontro seu,

Uma tímida esperança floresce.


Manoel Olavo

15 de setembro de 2021

NÃO

 



Não.

Não me diga que irá passar

E tudo voltará ao seu lugar.


Tem sido justamente este

O problema do meu país:

As coisas continuarem em seu lugar.


Os criminosos não são julgados

Os mentirosos não são desmascarados

Os miseráveis não são saciados de sua fome

De pão e conhecimento. 


Continuamos funcionando

Como uma enorme arapuca

De desigualdade, destruição e privilégio.


Não.

Não me faça acreditar

Que somos o país do entendimento 

Porque o chão está encharcado 

Do sangue de gerações passadas.


Nossos pacificadores foram genocidas.

Nossos desbravadores foram assassinos

De povos e de culturas, escravizadores

E traficantes de negros d'África.


A nossa elite ainda tem a mesma empáfia 

Do sinhô que, de noite, sorrateiramente, 

Ia até a senzala para estuprar a negrinha recém-comprada.


Não. 

Não me fale de honestidade,  de corrupção. 

Estas palavras tem sido desvirtuadas 

Para alimentar o sentimento antipovo e a despolitização da classe média 

(Que se acha branca, honrada e superior).


Ela que, como os capitães do mato de antigamente,

Sonha algum dia tomar café na varanda do casarão do Coronel.


Não. 

Não me fale mais de acordos e concessões.

O país está cansado. 

O país está destruído.

Uma praga tenebrosa

Se apoderou de nós

Em nome de Deus, Pátria e Família

E devastou florestas

Queimou animais 

Matou 600 mil pessoas

Destruiu a ciência, a universidade,  a cultura, 

Deixou milhões de pessoas sem trabalho e sem ter o que comer

E encheu de ódio a alma ressentida 

De milhões de brasileiros. 


Não. 

Há um limite para tudo

E ele foi atingido

No dia em que escolheram

Um deputado miliciano 

Para Presidente da República.


Alguém que dedicou seu voto

No golpe parlamentar de 2016

A Carlos Alberto Brilhante Ustra,

Chefe do DOI-CODI paulista,

Talvez o mais sádico torturador 

Da ditadura militar. 


No dia de seu voto infame,

Este homem não foi punido,

Muitos até o admiraram, 

Para que tudo continuasse em seu lugar.


O golpe se consumou

E depois ele foi eleito presidente da República 

Com o voto de pessoas que achavam

Que ele era honesto

Que no tempo da ditadura havia

Ordem e segurança

E que, finalmente, 

Tudo voltaria ao seu lugar.


Não. 

Não há mais tempo para transigir.

Não é mais possível perdoar.

Não é mais possível esquecer.

Que a rapina deixe de ser a regra

E a miséria da maioria deixe de ser

Uma condição natural. 


Decididamente 

É preciso que se quebrem as correntes 

Para que tudo saia de lugar.


E, do esgoto imundo da conciliação, 

Da expiação de um falso mito assassino, 

Surja afinal uma Nação. 


Manoel Olavo

VENTO ELÍSIO

Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...