8 de junho de 2010
A PALAVRA DE ELISA
Então, ela lhe respondeu que não o amava mais. E, como em outros momentos de sua vida, ele não sabia o que dizer. Talvez ela buscasse um triunfo surdo, um choque, usufruir da dor que nele agora eclodia. O impacto pode ser uma estratégia, ela queria desnorteá-lo. Ele ficou em silêncio, respirou. Lentamente, com passos comedidos, caminhou até a mesa e pôs água num copo. Bebeu. Eram segundos preciosos, precisava pensar antes de agir. De novo respirou. Entranhou-se em sua própria carne e desfolhou todas as camadas da sua alma em busca de uma frase, de uma palavra que servisse como resposta: a palavra para prender Elisa. Não encontrou nada. Não havia palavras, frases, fonemas, nem tolices sentimentais. Era apenas aquela mulher diante dele e sua infinita hesitação.
Tentou tornar-se sábio, prudente, cínico o bastante para sorrir, pedir perdão, gritar como um alucinado, atirar-se a seus pés, pular pela janela, enfim, fazer uma dessas coisas conforme manda o roteiro de um coração dilacerado, jorrando uma cascata de sangue e reminiscências. Conhecia tantos truques mas, naquela hora, não se lembrou de nenhum. Apenas rumorejava. Por vezes, se prometia. Naquela noite, em silêncio, se perdeu. Ela se foi e ele sequer tinha pensado em perdê-la.
Quando alguém se dá a conhecer? Primeiro, vêm os sinais: a dança ritual, aparição de indícios intrigantes; sorrir, sorrir bastante; trocar olhares, olhar fixamente; aproximar o corpo, um meio que debruçar-se sobre o outro; um tom de verdade e exaltação que percorre o rosto e a voz de quem fala; um frêmito, uma vibração difícil de descrever; um sussurro, como que dizendo: “me aceite, estou sendo o mais perto possível de mim para você”. Já tivera momentos assim, antes, mas, de fato, eles não lhe interessavam. Eram apenas um prelúdio para o verdadeiro encontro, para o que vinha depois, na cama, quando os corpos se refestelam após se amar, os rostos se aproximam, a voz se enche de ternura, o espírito promete mostrar sua definitiva intimidade e beleza. O instante em que as mãos se tocam, em que se ouve a matéria triunfante e a alma resfolegar. Nesta hora, assim despidos e capazes de delicadeza, eles eram homem e mulher enquanto a multidão desaparece e o momento se torna um calmo e morno regaço.
Olhando nos olhos de Elisa, ele lhe perguntou: “por que levamos tanto tempo para chegar até aqui?” Ela se lembra de como o ar mudava de cor e o sol dourava quando ela o via; e ele se lembra de como a visão da curva de seus lábios contra a luz do céu parecia cintilar. Declarava seu amor a ela: madressilva perdida, quanto tempo eu te esperei; mater dolorosa, nosso amor virá ao mundo entre torvelinho e brisa, dispersando as brumas da solidão. Encontro em você a medida certa para recostar minha cabeça cansada, o meu coração ferido. Vontade de entrar em você e me perder. Oxalá encontre um dia de repouso no azul de seus olhos baços.
Antes da cama, antes dos corpos se despirem, antes de qualquer coisa, tivera encontros fortuitos com Elisa, quando ainda mal a conhecia, e gostara de sua sedução envergonhada. Podia se fazer ouvir por uma mulher quase uma adolescente, e conseguia entendê-la excepcionalmente bem, apesar de nem sempre gostar do que ouvia - mas era tudo sempre muito sincero entre eles. Havia ternura e arrogância nela, feito mel e âmbar, e promessas de comunhão. Gostou dela, de seu jeito desengonçado de ser. Modos de menina. Vinte anos a menos que ele. Vestida como numa capa de revista Fashion. Um exagero. Um epítome da modernidade, bordada em cores cítricas, cabelos curtos e louros, olhos azuis e míopes, desejo louco de mostrar-se erudita e definitiva. Quase um incesto, ou um conto da carochinha: era só escolher.
Naquela noite, encontraram-se a sós e fugiram para um quarto nos fundos da festa que aquela hora quase terminava, conversaram e riram com a intimidade peculiar dos amantes que ainda não se possuíram, e quando Elisa lhe disse, após um instante de silêncio recíproco: “e agora?” – ele lhe respondeu, sem perder a deixa: “agora, nós nos beijamos e a cena escurece”. Desejo. Nesta noite, ele aprendeu o caminho até o seu quarto, no terceiro andar de um velho prédio sem elevador, perto de uma praça bucólica, meio desconhecida, atrás da Rua das Laranjeiras, onde crianças brincavam, aves zuniam, e velhos remoíam seus dias e dores em silêncio. Ela morava numa espécie de sótão, anexo à casa dos pais. Um quarto escuro e lúgubre, cheio de almofadas vermelhas, centenas de livros, discos de rock e várias bonecas e fotos da Betty Boop. Um mausoléu pop. Havia algo de transgressor naquilo, mas ele sequer desconfiava, nem saberia dizer o quê. Ela, certamente, o usufruía.
Qual é a medida do bom gozo? Era poder agarrá-la por trás, e ela pedia, e ficar olhando para sua nuca, para a linha incerta de seu curto cabelo louro, para seu corpo pálido e ossudo, que se arqueava e se contorcia, ia e voltava, para os seios pequenos, de mamilos rosados, e a curva suave de suas costas, seu olhar esgazeado, e o modo como ela arfava e gemia, e sorver o cheiro agridoce que se lhe escapava quando ela gozava, em meio a gritos de não mais poder. Qual é a medida do mistério? Era estar ali, sempre, de novo, todo dia, mesmo quando o tempo e a agenda não permitiam, inventando desculpas e pretextos, subindo as escadas como um condenado rumo ao cadafalso, por causa dela, ele tinha de voltar para encontrá-la, com seu sorriso adolescente e os olhos assustados de um profundo azul.
É dolente o som do desapego. Ela gostava de ficar perto dele. Deitava-se ao seu lado, após gozarem, pegava sua mão e passava sobre sua barriga magra, dizendo: “meu corpo é real”. Aceno. Ele podia quase auscultá-la, desvendava suas feridas e via quanto desespero havia em sua pretensão. Era mentira, tanta, que ela ia ficando mais distante à medida que ele a decifrava, a melodia da voz de Elisa se distanciava, os sons vindos da rua não mais entravam no quarto, eram refletidos feito cores decompostas por um prisma e era o silêncio decompondo as mentiras dela.
De novo, como sempre, e por hora, era tempo de acordar. Seus lábios ressecados pediam um gole d’água. Passar a mão pelos cabelos, lavar o rosto com água fria, tentar livrar-se do passado, que, àquela hora, ressurgia em imagens congeladas à sua frente, como nobres sentados em cadeiras de pinho, numa atmosfera solene de acerto de contas. Fuzilaria, acordes desafinados, verdades nunca ditas, distância, solidão, um movimento frenético de pernas e passos que iam e vinham, que murmuravam, choravam, riam, e a velha casa que ficava sempre aberta, atravessada por um largo e sujo corredor, onde passavam os personagens do filme mal decupado de sua memória.
Levantou-se e foi até a pia, lutando para despertar. As imagens da noite se dissipavam como orvalho na manhã. Voltou para a cama, onde Elisa permanecera, e viu que ela respirava com dificuldade enquanto dormia, aninhada como uma princesa que adormece após a foda. Cheiro de adolescente e desordem nos lençóis. Quente. Não resistiu, voltou para a cama, deitou-se um pouco mais junto às suas sardas, no calor do cobertor onde se enroscavam. Sua alma desprotegida se aqueceu no sono de Elisa. Numa mancha do teto embolorado, uma gota d’água insistia em se formar.
Ele a desejou muitas vezes mais. O tempo passou, mais e mais vezes com Elisa, de volta ao mausoléu, ela se mostrando mutável, única, encantadora, a murmurar tão suave e decidida, conhecimento, afagos, risos, ele enternecido, achando-a capaz de encontrar o argumento definitivo para aplacar a sua dor. Ele a possuiu, às vezes com ardor, às vezes com fastio, derreteu-se nela em dezenas de litros. Lembrou-se dela nos dias de distância. Sorveu e cheirou seu aroma, renovou o seu regaço, aprendeu seu agridoce sabor. Por fim, viu seu terno e baço olhar azul rasgar a cena noturna do quarto onde ele vazio ficava.
Um dia, ele percebeu que perdia a figura clara de Elisa. Qual era a palavra certa para prender Elisa? Desde então, ela se tornava muitas e ele a queria mais, então ele ficou sem saída dentro do labirinto. Vertigem implacável, que não podia acompanhar. As cenas eram dela, os urros eram dela, os silêncios eram maus, mas não havia palavras. “Eu a perdi”, ele pensava. “Ela está indo embora”. Qual era a palavra dela? A palavra de Elisa? A nave e os viajantes ficaram à deriva no mar dos sonhos de Elisa. Perdeu-se a chave e o rumo, a ilusão borbulhando, o tempo passando, e ele sequer sabia de onde falar com ela. Miríade de luz no espelho. Rastro. Elisa se multiplicando à sua frente, em trilhas que adornavam o infinito. Ele teve medo disso, tanto, ficou tão desatinado, que um dia se encheu de coragem, e perguntou se ela ainda o amava.
Manoel Olavo
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