Não vai funcionar. Sumir não vai resolver. O negócio é sair fora, sem deixar vestígio, sem chance pra argumentação ou julgamento. Sempre foi minha especialidade. Mas, desta vez, não dá.
É fácil sumir na cidade grande. É só fechar as comportas. Trair o desenho do mapa. Não aparecer onde esperam te encontrar. As pessoas vivem em guetos, em nichos separados: cada uma tem o lugar de trabalho, o lugar da família, o lugar da diversão, o lugar de fazer maluquice, e assim por diante. Rotas predeterminadas, limites definidos. Peças de um jogo. Cada coisa em seu lugar. Centenas de tribos isoladas, iguais na aparência e na língua: língua de gente ordinária dizendo eu, eu, eu...
As pessoas gostam de achar que os equipamentos não falham. Você já viu como ficam quando o celular toca na rua? Já viu o tamanho do pulo que elas dão? Um susto, um salto trêfego, a cara assustada balbuciando “alô?! alô?!” – como se avisassem que tinham acertado na megasena, ou fosse a Angelina Jolie querendo dar. Experimente, então, não atender o telefone que toca. Ignore a traquitana eletrônica. O que há de ruim em luzes piscando, campainhas indóceis, sirenes, resmungos virtuais?
Após um tempo, as pessoas desistem, incrédulas. Não conseguem admitir o fracasso dos equipamentos. Como precisam acreditar em alguma coisa, acreditam nos equipamentos. E você já notou quantos existem por aí, e-mail, celular, twitter, facebook, MSN, telefone, secretária, GPS, câmera de vídeo, foto digital, o caralho a quatro, já percebeu que não dá mais pra ficar sozinho?
Deixar os aparelhos sempre ligados, pra fingir que existe alguém por perto.
Com você, eu fiz diferente: fiquei invisível. Tivemos uma paquera rápida, anos atrás. (Não sei se você se lembra). Depois, desaparecemos um do outro. Eu deduzi seu roteiro, passava nos mesmos lugares um minuto antes ou depois de você passar. Deixava pistas nas pessoas com quem você falava, deixava cheiros, artifícios, reflexos meus nas imagens que você via, nas coisas que você tocava, no quarto em que você dormia. Dava pra sentir minha presença sem me ver. Mulher, a gente ganha sendo imprevisível.
Depois de muito tempo sozinho, eu queria um olhar com alguma densidade. Uma mulher, não uma menina. Não uma louca. Uma mulher. Pensei em você, no que não houve no passado, e ficou nos esperando nalguma região em suspenso, mas não adiantou. Você não era do jeito que eu imaginava.
Absorto, grave, sinto um cheiro acre passando pelo ar, o azedo entrando em minha narina. Não parece um cheiro vindo de você. Parece sangue.
A estratégia de te seguir como um fantasma deu certo. Perguntei se você queria ajuda com as sacolas, paramos pra conversar, o assunto deslanchou, você sorria. Face a face, devo confessar, é foda. Fica um incômodo, uma tensão sexual por trás da aparente camaradagem, impregnando gestos, modos e palavras. Eu acho que vocês alimentam isso. No fundo, gostam do risco iminente de serem violentadas.
Foi fácil perceber que você estava a fim. Disse-me coisas ternas e secretas. Contou piada. Riu do meu mau humor. Pediu que eu voltasse noutro dia - “Seu silêncio me deixa curiosa” – disse. Eu não sabia se suas frases eram reais ou se você as comprava, como se compra roupa. Frases prét-à-porter.
– “Pára, pára com isso!” – você disse enquanto tirava a mão que alisava suas costas. Um minuto depois, falou: - “Se quer ver minha tatuagem, deixa que eu lhe mostro; olha...” - era um anjo torto, roxo, do lado direito das espáduas. Não era de Drummond aquele anjo torto, era uma referência banal a um misticismo de encarte de revista de domingo. – “Pode pegar...”- você me disse. Passei os dedos naquela aberração, com força. A gente faz qualquer coisa quando está com tesão.
O corpo famélico, tenso. As coxas grossas, no entanto, eram boas; a bunda dura; a coluna dorsal empertigada. Um ponto de exclamação cheio de angústia. Pousado na omoplata, o anjo roxo me encarava.
Começamos a sair. Namorados. Disfarcei o mal-estar nos lugares cheios de gente bem vestida e educada. Como um casal cumprindo regras fomos ao cinema ao supermercado à cafeteria comemos mil-folhas tomamos café com saquinho de açúcar cristal pauzinho de canela fomos até o shopping pras amigas conferirem o homem com quem você estava saindo. As amigas eram meninas vendedoras das lojas. Fácil entender porquê: elas não te confrontavam, tratavam-te com a medida intimidade devida a um freguês que compra roupas e outras coisas caras na loja delas. Você era presa fácil. As lojas estão cheias de gente assim. Quando saía, elas ficavam rindo da sua cara.
No princípio é o tempo bom em que tudo acontece, dá gosto, dá saudade, parece haver o que descobrir. Depois vem o tempo ruim, as coisas voltam a ser as mesmas. Você olha, olha, tudo está lá, idêntico. Depois é pior: a gente enxerga a realidade. Aí é o terror.
Você era doida de pedra; caixa de rivotril dentro da bolsa; tumulto psicopatológico; uma mágoa feroz; um blá-blá-blá que não pára; uma voracidade de planta carnívora (toda mulher no fundo é uma chupa-cabra); a cara sonsa de quem diz “fique aí, se você for fiel e carinhoso, eu dou pra você”; o jeito afetado de me chamar de “meu amor” e isso parecer um insulto; mania de traição, de perseguição, de ciúme; mania de bancar a importante; um cheiro de coisa velha no ar na hora de trepar; e um anjo roxo pousado na omoplata. Vontade, meu amor, de te dizer nunca mais. Desde que estou com você, tudo ao meu redor desmorona. Pior do que ser corvo, pior do que ser cadela, é você ser a mesma: a mesma mulher de sempre.
Melhor acabar com isso. Arrancar o bandaid com um puxão só. Fui ao seu apartamento, disse que precisávamos conversar, a gente precisava pôr um fim naquilo, eu não consigo ficar com você, não consigo ficar com ninguém, não quero te fazer sofrer mais tarde. (Mentira. Queria me livrar de você). Você questionou, chorou, pediu, me chamou de covarde, depois deu pra mim como dão as mais profanas putas. Eu topei porque queria meter, afinal lá dentro é sofreguidão, é fonte morna, lá dentro é meu pau deslizando nas entranhas dela, tudo parece silenciar por um segundo. Depois é só limpar, ignorar o cheiro de coisa velha e dar o fora. O anjo roxo que se foda.
Sumi um mês. Você me ligava, desesperada. Pelo menos parecia estar, não sei dizer ao certo (Vindo de você, nada era verdadeiro). Deixou recados chorosos, meigos, interativos, quilométricos, depois deixou-os desaforados. Tomou meio litro de vodka e uma caixa de rivotril. Deixou recado na secretária eletrônica se despedindo. Disse que ia morrer. Jazz ao fundo. Caguei. Eu sei trair o desenho do mapa.
É como uma desilusão amorosa, a pessoa nega até o fim.
Você continuou me ligando sem parar, me cercando por todo lado. Mandava recados. Me seguia no emprego, no caminho de casa. Me esperava na esquina. Parecia que era você quem comandava. Parecia querer me intimidar, me deixar com medo das suas intenções – como se eu fosse uma velha covarde. Mas eu sei fechar as comportas, trair o desenho do mapa. Desde o dia que te encontrei, não consigo mais ser feliz.
Gente como você não vale a pena. Gente falsa, que não ama de verdade. Você precisa acreditar que ama, fingir que ama pra ocupar a alma rasa e o equipamento ocioso. É capaz de pagar pra algum drama acontecer na sua vida, pra depois postar no facebook, contar no analista, no salão, na academia, contar pra menina vendedora da loja, deixar o jornal publicar a história.
Pra dizer que valeu a pena sair com o cara silencioso, trepar com ele, ter alguém cuidando da coluna rija e do anjo roxo duma mulher solitária. Pro pessoal achar que vale a pena. Achar que compensa a multidão, a rua suja, a tara, o assalto, os pobres te vendendo bugigangas; que compensa acordar cedo, buscar filho na escola, provar vestido, comprar revista, pagar conta, pedir cartão no banco, jantar no restaurante, dar esporro na empregada, comer biscoito, beber vinho, tomar antialérgico, trepar sem vontade, virar de lado, tomar remédio pra dormir, aquela merda parecendo vida. Essa gente fica ruminando, é isso. Ruminantes. Ainda as estrelas não estão à venda.
Vamos ver quem vence essa partida. Se eu ou os equipamentos.
Só tem um jeito, acabar com isso de vez. Ligo pra ela, finjo ternura e arrependimento. Digo que eu estava errado, que sinto a sua falta. Combino dia e hora para um encontro. Chego de mansinho no seu prédio, toco o interfone com voz de pobre coitado. Entro de surpresa, tranco a porta, dou-lhe uma gravata com força até ela desmaiar. Pego a faca de carne, furo, furo, furo, repetidamente, até pararem os movimentos. Continuo esfaqueando em vários lugares, uns macios, outros cartilaginosos, outros bem duros. Com jeito, a faca quebra os lugares duros e entra até o fundo. O anjo roxo dela fica parecendo uma berinjela rasgada, salpicada de vermelho.
A cabeça não consegue achar uma saída, por isso eu converso com você agora. Tiro o fone do gancho, desligo o celular. Apago a luz da sala. Ligo a TV com o botão em mute. Como me livrar do seu corpo, sumir com o flagrante? O que fazer com o seu corpo? O que fazer com você? Desta vez, não dá pra simplesmente sumir. Desta vez, preciso sair da cidade, do país. Ir pra bem longe, sem ódio, sem medo, sem nada. Vida nova. Um lugar onde não haja equipamentos.
Você ali, parada. Eu sem saber o que fazer. Então abracei seu corpo imóvel, beijei seu rosto sujo de sangue, o cheiro acre entrou em minha narina, o gosto azedo travou a minha boca, eu te abracei e, sinceramente, perguntei: “meu amor, o que eu faço para te esquecer?...”
Manoel Olavo