26 de dezembro de 2009
O MENINO VÊ
I
Olhos arregalados
Pele morena
O menino vê
Compromisso firme
Com o impossível
Futuro incerto
O menino vê
No calor do cerrado
Onde nasceu
O menino vê
As sementes
As bagas
As folhas
Os espinhos
A água do rio
O sol calcinante
O pôr-do-sol
De sangue
Os peixes os pássaros
Os insetos
O fôlego da vida
No ritmo do mato
De noite
O menino vê
Um céu protocolar
As estrelas caídas
Fica fascinado
Vendo mulher nua
A terra nua
A cidade
Que os homens
Ergueram sobre ela
O menino vê
Os homens
E seus motivos inconfessáveis
Vê que as coisas acontecem
Apesar dele
Que as pessoas e os dias
(Raramente os mesmos)
Passam
Que o mundo ao seu redor
Passa
Morre
Recomeça
Só ele
Viajante inamovível
Frágil barreira
Diante da realidade
Vive igual
(Mas diferente)
Na dor que o contém
II
Podia te buscar
Mas prefiro que venhas
Calmamente
Menino que vive
Das minhas lembranças
Vieste
E aqui estás
Deitado na rede
Na Rua da Barra
Lendo pra afastar a solidão
Com medo do ferrão da arraia
[e do fogo do inferno
Intérprete
Arremedo de esperança
Zelo de amor por nós
Revolvo
Teu solo original
Atrás de um começo
Um sonho
Um alento
Algo que venha
E seja bom
Tampouco hei de ralhar contigo
Repousa sereno ao meu lado
A vida tem sido
Dolorosamente
Para nós
III
Em meu pensamento
O menino vive
Décadas depois
Na cidade grande
Entre tanta gente
O trem chegou
E a multidão parte
Cada qual segue seu rumo
A paz possível
Por ora retorna
É cedo ainda
E o menino vê
Manoel Olavo
ASTRONOMIA
Ele não podia dourar o céu, nem remover estrelas incrustadas, pois de nada ele sabia, ele, o aventureiro, o nômade domesticado, hoje em repouso após façanhas insuspeitadas, ele que, de mãos para cima, finalmente se rendia, ele quase um resumo de tudo, um momento novo, um arremate na biografia, uma vista aérea sobre o passado de bufão, de clochard, buscando algo que o fizesse olhar ao redor, cuidar da semeadura, erguer muralhas em torno do arraial recém-fundado. Passados alguns séculos, tudo isto desaparecerá, deixará de existir, será só poeira e ar e lembranças desbotadas, mas ainda se ouvirá um grito vindo da varanda, um animal uivando no deserto, na areia em que os dois de tarde caminhavam, quando ela lhe disse que o cometa passaria, mas não seria visível a olho nu, e certamente não seria espetacular como se anunciava, aquilo era uma mentira, uma tapeação da mídia, e ele sorriu por dentro, irritado, de onde vinha tanta pretensão, quem ela pensava ser, o Ronaldo Rogério de Freitas Mourão...? Pensando bem, ela só era uma linda menina, e ele a amava justamente por isto. Muito pouca era sua astronomia. Talvez ele devesse, se tivesse um pingo de juízo, se casar com ela...
Manoel Olavo
19 de dezembro de 2009
JANELA DO DIA
VOCÊ SE DERRETE EM MIM
Essa paixão sôfrega e sedenta
Os lábios entreabertos
As pernas entreabertas
A saliva derramada em nós
Seu corpo nu me inspira
Tesão interminável
A língua desliza mansamente
Por vales da sua barriga
E lhe descobre os pelos
Eu me detenho e lambo
O recôndito das coxas
Dedos ágeis desvendam
Seus cantos e fendas
Súbita a rubra flor
Colada em minha face
Inspeção de línguas
De sucos e de lábios
Meus dedos tocam o seu desejo
A língua inteira que penetra
Enquanto você se derrete em mim
Manoel Olavo
E POR ISSO SONHAM
Liame entre o que sou e o que fui, até
A minha morte, raramente me perdera.
Não vou te contar dos lugares que enfrentei
No vórtice da vida, mudo, à tua espera.
Avesso do caminho que segui um dia,
Ângulo de través, gesto de um corpo ausente,
Faz o meu destino ser passado ao revés
Quando chegares, terno, espesso e confidente.
Luminoso sinal, fronteira que divide
E vai da terra ao éter buscando um sentido
Pro mar de gente só que segue horas a fio
Em lento perfilar de exército vencido.
Por que juraste haver tão delicados dias?
Teus frágeis eremitas, os teus obstáculos
Remanescentes na multidão... Vem a noite,
Todos dormem... Pretendem escutar oráculos
[e por isso sonham
Manoel Olavo
POESIA
O céu fica intangível
E o ar irrespirável
Se vives ao relento.
Costura com teus versos
A angústia originária.
Constrói um mar de frases
Um arroio, uma tela
Onde a letra soletra
Em fogo brando até o
Pensamento encontrar.
A poesia vem assim
Como libertação:
Verbo denso, maneira
De sonhar, de parar
O tempo e o deus da morte.
Poesia, eu te criei
Imaginariamente
Sem culto ou irrisão.
Há mais na vastidão
Do que podes mostrar.
Manoel Olavo
15 de dezembro de 2009
NA RUA
Seus olhos ainda tentam resistir. Imaginam respostas. Bóiam divididos entre o tempo e a espera. Buscam encontrar o coração das coisas, alguma densidade, antes que tudo vire alimento para os bichos. Seus olhos, que não são dali, observam. Inspecionam. Seguem sem paz por esta rua úmida, onde se exibem os restos de uma civilização à venda.
Manoel Olavo
13 de dezembro de 2009
NEM ISSO EU CONTEI
Eu tenho a hora da caverna. A hora do morto. Preciso estar em silêncio, a sós, no quarto, num recolhimento protegido.
O esforço para agüentar o alarido das coisas, a brutalidade das pessoas, é tamanho, que preciso de um tempo para refazer a crosta. Pode ser longo. Na maior parte das vezes é inútil.
Eu sempre sangrei e me desfiz em meio às coisas. Sempre penei no jogo social. Desde que consigo me lembrar, era atravessado pela opulência descabida delas.
É difícil falar sobre este incômodo. Parece haver um pacto para ignorar isso. Mas eu não assinei.
Em 2001, parei de tentar. Juntei os cacos, fechei o comércio, diversos pelotões tinham sido dizimados, e fiquei ali, entre a intenção de ser e a derrocada. Um exército que desiste da ocupação.
Eu me tranquei em casa, de um jeito parecido com para sempre. Tirei o fone do gancho. Mandei o menino dizer que eu tinha saído.
Tentei aprender a me proteger conscientemente. Aparecer somente o necessário. Fechar o vidro da janela. Tentar o truque de parecer estar ali, não estando. Rasgar o véu das memórias, desvendar a mitologia dos fatos. Descer do pedestal e lamber o chão das derrotas. Ser duro e evitar, antes de perder sangue. O inferno são os outros.
Deixaria de ser uma contingência, seria uma escolha. E, a cada vez que eu insistia, a dor de estar ali despido, rachado, traído, distante, esta dor diminuía. Ficou mais confortável. Não foi mérito, não, foi puro desespero.
Contudo, há o preço de estar só. Não assusta, mas provoca desconforto social: uma dor de viés que vem dos outros.
O mundo parece uma festa vulgar ao arrepio da lei e da pele. Todos parecem estar se divertindo. Todos parecem um destroyer num desfile náutico. Eu me viro com este bergantim. Se há algo capaz de irritar, é quando todos assobiam, felizes, por cumprir o dever de casa.
Pra gente lá fora, uma festa de corpos e falas. Pra mim, uma maldição. Fiquei trancado dentro de casa, em segredo. Nem isso eu contei.
Não quero dar a impressão de que domino a arte da retirada. Não é isso. Continua sendo tão enigmático quanto antes, quando eu tinha nove anos de idade e fugia do colégio, assustado, e ficava na esquina olhando a parede, coletando as cinzas. Só existe mais clareza.
Em 2007, voltei a arriscar pequenas incursões ao continente. Expedições de reconhecimento a uma terra desconhecida. Mas o barulho e a brutalidade continuavam. Pareciam ter piorado.
No entanto é preciso prosseguir, antes que venham as brumas. Não sei ser amigável. Posso, no entanto, gritar tão alto quanto os demais. Não tem sido necessário.
É preciso distinguir se o que vemos é árvore ou miragem; se a dor é palpável ou ilusória. Substância demais, pra tão pouco sonho...
Manoel Olavo
NO AR
Desfeito em ti
Tornei-me parte
Do mundo, das
Forças colossais
Do céu, do mar
Do chão, do vento...
Eu as ouço, elas
Estão aqui comigo
Sabedor de ti
Mesmo sem vê-la
Eu posso te falar
Onde tudo é silêncio
Eu sei de orvalhos, firmamentos
Pássaros azuis, anjos dormindo
Capturo sinais
Ouço a tua voz sonhando
Posso decifrar enigmas
E te querer só minha
Desejo, meu amor
Te contar histórias:
(Somos os emissários delas)
Tu e eu, leves, no ar
Entre vagas de astros
Manoel Olavo
ARQUITETO DE SÓIS
O AMOR SE FOI
Deixou a casa
A rua, o tomo:
O amor sem dono.
O amor perdeu
A cara, o mote
O rito, o teto:
Vai circunspecto.
O amor entrou
Em balancetes
Telas e telões:
Tem suas razões.
O amor está
Em pleno olvido:
Nunca lembrado
Ama exilado.
O amor não sabe
Mas quem o acha
Eriça a pele
Só pensa nele.
O amor requer
Silêncio e muita
Intimidade:
Ser à vontade.
Cativa os ventres
Encharca os rios
No fim de agosto:
O amor dá gosto.
O amor assusta
Pois muita gente
Se mostra frágil
Ao seu contágio.
O amor se foi
Mas sempre volta:
Ao ser chamado
Torna-se alado.
Manoel Olavo
12 de dezembro de 2009
O MAR
Misterioso é o mar
E cavas são as ondas:
Pêndulo das águas
Espumando crostas
Onde nasce a terra.
Paira sobre o mar,
Na visível face,
A centelha, o raio
De luz. Mais abaixo,
Espalham-se as águas.
O manto das águas
Cobre e molha a terra.
Camadas de azul
Formam céu inverso
Na paisagem líquida.
Pelas profundezas
Abissais se encontram
Náufragos, cometas,
Altas cordilheiras
E meu ser primeiro,
Úmido, viscoso,
Parte da paisagem
De águas geladas;
Grão, quiçá semente
Em solo marinho.
2. O Corpo
Estou de pé
Desperto
Fui lançado a terra
Pelo mar
Sou um conto
(Um corpo)
Em forma de homem
Ainda levo o mar
Dentro de mim
Sou uma ilha
Sem arquipélago
Um Odisseu
De mares sombrios
Meus sonhos morrem
Ao longo do dia
Busco o mar
Para revê-los
Embora haja
Amor em mim
Eu quero o mar
E seus presságios
3. A Partida
E entre muitos que os louvavam,
À beira do cais,
No dia de partida,
Houve um a quem
Não comoveram os hinos
E bandeiras coloridas.
Houve um cujo
Espírito soturno
Fez-lhe perceber
Que a hora verdadeira
Não se determina.
- A este, chamaram-no cético.
4. Os Filhos do Mar
Somos os filhos do mar
Seguimos nas naus lotadas
Em celas forradas
Com folhas-de-flandres
Atrás de eternidade
Mar adverso
Diminuta frota
Na qual vão doze
Velhos timoneiros
Mar de sargaços
Brisa do sol ao meio-dia
Mapa de desafios
O espírito do mar
Preso numa balsa
Manuseia seu compasso
A vida é estranha
E surpreendente
Nas ondas do mar
São algas-azuis
Corais sanguíneos
Mariscos, rochedos
Fractais
Eu sei de histórias e fatos improváveis
Mas me calo diante do mar
Da grandeza eterna do mar
Saibam todos
Que a maré sonhada não virá
Tampouco virão os argonautas
5. A Jornada
Gira o tempo
Somam-se rotas
Em ciclos de velas e dias.
O mar, de sol a sol
É uma pátria de espumas
Em que o coração flutua.
(Mas o porto não se avista...)
6. Os Sobreviventes
A bordo do barco
Vão os sobreviventes
Poetas regem o coro
Anjos guiam a nau
Ficaram anos
Parados na neblina
Cumprindo sua rota
Debaixo do sol
Os olhos da tripulação
Viram lutas desumanas
O leme, o mastro, a quilha
Trazem fundas cicatrizes
Foram todos consumidos
Por seu âmago, ó mar
Os males desta condição
Porém, são irrelevantes
Não importa haver paz
No coração dos navegantes
Maior do que eles é o mar
E toda a sua glória
Manoel Olavo
SIMETRIA DO ALUVIÃO
Da mata
Na manhã
Desperta
Choveu forte
Toda a noite
Das copas
Encharcadas
Gotas ainda
Caem
O visgo grosso
Da água
Pende
Da folha
Que se dobra
E desce
Até o
Chão
A terra
Chupa
O que o mato
Poreja
O caracol
Escala
A ebúrnea pedra
Nela deixa rastro
E desce
Até o chão
Formigas
Formam bola
Vermelha
De milhares
Em cima
D´água
O besouro
Rola lama
Vira bosta
O besouro
Fede
A folha morta
Também fede
Cheiro de marrom
Decomposto
No meio da mata
Água de chuva
Forma regato
As folhas mortas
Caem no leito
Que leva
Planta podre
Água turva
Formiga
Graveto
Seixo
O sujo do mato
Deposita-se
No chão
O galho
Morto
Fica preto
Esfarela-se
Na terra
A água
Sorve sal
Da pedra
Que lenta
Se dissolve
A folha
Vira lodo
E grão
De modo sólido
Se inscreve
O ataúde
Da mata
Rumina
Restos úmidos
Cobre-os de terra
Do oco do pau
Que ali derrete
Vem o podre
Vem o vivo
Que se adensa
Na lama
Que escorre
Ao rés
Do chão
No podre
Pulula
A vida
Medida
Simétrica
Do aluvião
Manoel Olavo
UMA PALAVRA
Uma palavra só
A crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento
Palavra
Palavra viva
Palavra com temperatura
Palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz
Mais que de vento
Palavra
Palavra dócil
Palavra d´água
Pra qualquer moldura
Que se acomoda
Em balde
Em verso
Em mágoa
Qualquer feição
De se manter palavra
Palavra minha
Matéria
Minha criatura
Palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve
Desatento
Palavra
Talvez à noite
Quase-palavra
Que um de nós murmura
Que ela mistura as letras
Que eu invento
Outras pronúncias
Do prazer
Palavra
Palavra boa
Não de fazer literatura
Palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento
Palavra
Chico Buarque de Hollanda
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
Machado de Assis
VENTO ELÍSIO
Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...
-
A nau - Debaixo dela Um mar de Rochedos e rotas Ondas Do mar: Um cristal Que se rasga A mão Inclinada Fende a Superfície ...
-
Inverno Na dureza das palavras Inverno No breviário das sombras Inverno No equilíbrio das somas Inverno Lendo os próprios pensamentos Inver...
-
Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...