Caminhar pela calçada esburacada de cimento, pedras portuguesas e lembranças, cercado pelo tráfego cada vez mais hostil da grande cidade. Sol a pino. As pessoas parecem sobrar nesse cenário. É preciso lutar por cada centímetro de espaço, contra máquinas mais fortes, contra transeuntes mais rápidos, contra mendigos, vendedores ambulantes, bicicletas em cima da calçada.
Caminhar num ritmo que lhe é próprio, é pé ante pé, mas é efeito da cidade, da sua ânsia, do fôlego de milhões fluindo-lhe nas veias, e as buzinas e sirenes do seu lado. Na esquina observar que um galho do hibisco deu a volta por cima do muro da casa, e flores vermelhas gotejam na calçada, formando um passadiço rubro, no qual as flores caídas ressecam-se ao sol e se desfazem com a pisada das pessoas. Mas não há tempo para metáforas de flores e cidades, nem para metáforas sobre caminhantes solitários. O mundo anda muito refratário a certo tipo de lirismo.
Não será estranho, porém, admitir que, a cada passo dado, o mundo ao redor do caminhante se congela em sua tridimensionalidade e uma multidão de fatos vai se dissipando, enquanto outra dimensão paralela surge de seu distraído passo a passo. Assim, cada pensamento, palavra ou gesto do caminhante exprime uma escolha que elimina as demais possibilidades e molda um universo complexo ao seu redor. Agir de determinada maneira é criar um mundo fechado de causas e efeitos. A cada decisão tomada, cada simples escolha de direção, inúmeras realidades paralelas deixarão de existir e outras, inéditas, nascerão. Há um universo novo em cada movimento, lembrança ou encontro que a vida lhe oferecer. O caminhante funda firmamentos, enquanto pisa em hibiscos. Cabe-lhe assumir essa atividade fundadora. Não é poesia, é uma evidência matemática.
Manoel Olavo
Manoel Olavo