24 de fevereiro de 2011

MONÓLOGO DOS MOTIVOS



Incrédulo, vi que todos têm excelentes motivos. São prisioneiros de suas sagradas razões. Ninguém simplesmente se comporta dum certo modo. Todos precisam agir como agem. É seu alimento.
Eles se encontram no caminho, suas histórias se cruzam, seus olhos dão testemunho de aflição mal disfarçada, mas, apesar de tudo, cada um está irremediavelmente só, longe de si, enganado, distante dos fatos e dos sentimentos. Cada um é dono da razão, construída nos moldes de sua própria justificativa. Cada um se move segundo a convicção que este processo assegura. A velocidade de cada um depende do tamanho da raiva que carrega. E todos são dissimulados. Todos escondem seus verdadeiros motivos.
Por isso falamos tão alto: para espantar o medo que isso provoca. Em meio a tanto desentendimento e engano, é surpreendente que algo funcione. É surpreendente que o estrago não seja  maior. No entanto, todos se movem. A vida segue seu rumo.
Nossa humanidade só se revela quando alguém, por descuido, covardia ou certeza da morte, resolve exibir sua falha. Consegue dizer que não dá pra carregar tanto peso assim. A verdade só vem à tona quando um de nós fracassa e exibe seu horror e sua patifaria. Quando o desespero e a farsa surgem sem meias palavras. Mas este é um exercício perigoso. O testemunho que ele instala é assustador. Tal revelação desperta ódio entre os demais, ameaça as regras, denuncia os vencedores, agride o status quo. Quem faz isso se torna um maldito. Todas as penas e mecanismos de resgate, construídos com este fim, serão usados contra quem teve a ousadia de falhar.
Outros, timidamente, mostram admiração pelo proscrito. Tentam negociar com o infrator, mostrar-lhe algum medo, alguma falha parecida: “olha, eu falo da minha dor, você fala da sua, ficamos quites, ok?”; querem trocar a fraqueza humana como se estivessem num balcão de negócios, num escambo de derrotas morais. Outros se sentem atraídos pelo abraço do afogado, pelo desastre à sua volta. Outros tentam amaldiçoá-lo, julgá-lo, condená-lo, insistem em redigir a genealogia de seu desastre, provando que, sim, ele se anunciava desde o começo.
Outros usam o que foi revelado para espezinhar quem confessou o seu fracasso. Chutam cachorro morto. Querem exorcizar aquela falha de sua própria vida, dizer “comigo, não”, num exercício de negação, de afirmação de virtude, ou de simples crueldade com quem está em posição inferior. A maioria, no entanto, sequer consegue ouvir o testemunho de quem desiste. Está ocupada demais, às voltas com seus próprios motivos.
Assim a caminhada continua, estamos todos muito cansados. Alguns prometem novas formas de dissimulação, razões invencíveis, juros mais baixos. Animais do deserto, reunidos à força, dor e júbilo parecem nos aproximar, da mesma forma que nos devoram. Há muito a ser descoberto entre as cinzas do que foi destruído pelo fogo. O que nos cabe, antes que a luz se apague? De que vale cantar essa humanidade soterrada? O baile continua. A oferta de máscaras continua vasta.

Manoel Olavo

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