Empalidecia quando as lembranças ameaçavam voltar. Por ora, elas gemiam na porta de entrada. Na agonia de sobreviver, dispusera-se a viver sem um passado. Abdicara dele.
Todos os acontecimentos, o desenrolar da sua biografia, sua origem e contingência, seus erros e escolhas, foram apagados, um por um. Tornou-se leve, banal, e sem sentido. Por que não pode um homem dispor da sua vida, conforme sua disposição e benefício?
Arrependimento, certeza, júbilo, tudo isso é somente uma construção. Tecem-se relatos a partir de escolhas, metas e disposições emocionais. No fundo, trata-se de uma tarefa interminável de autoilusão. A liberdade definitiva é desligar-se dos fatos que aparentemente compõem a nossa vida. Toda a dor, agonia, êxtase e injustiça reduzidos a componentes opcionais e intercambiáveis. Como jogos de armar.
A sensação de inteireza individual requer uma história pessoal contínua. E um passado que pareça determinístico. Tal biografia imaginária é mais uma dentre muitas fábulas que contamos, da qual continuamente nos queixamos, e contra a qual nos digladiamos, pois age como uma criatura que ataca seu criador. Não há realmente uma autonomia dos fatos: há, sim, autonomia do martírio.
A libertação exige uma tarefa colossal para destruir essa narrativa de reminiscências. Para expulsá-la. Pulverizá-la de vez. Uma vez desprendidos, soltos, é preciso um esforço adicional para impedir o retorno daquilo que, sem cessar, clama, grita, bate à nossa porta e quer nos explicar. A cada fato do passado renascido, extingue-se uma possibilidade de ser sobre a qual não refletimos.
Lutar, lutar. Tentar ficar de pé contra todas as evidências, como um gigante de pés de barro. Promover um cataclismo da memória. Fazer um esforço colossal para manter-se ereto, mesmo estando vazio, sem lembranças purulentas a nos preencher por dentro. É melhor esquecer, do que ser um jazigo...
Manoel Olavo
19 de janeiro de 2010
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