5 de janeiro de 2010

DEUSA



Não dá pra saber de onde vem esse barulho. Um uivo, um grito no ar, rachando o osso do céu, assim: crec!, com um golpe só.

Eu te perguntei por mim, porque me via o tempo todo nos teus olhos. Eu sabia de mim porque te escutava. Um espelho. Você me refletia como um som de almas enredadas. Você me dizia, deusa, lentamente me decifrava, e cada frase que eu ouvia me desmontava. Um beijo estalado na testa, as expectativas em suspenso, a mentalidade rara, inefável.

Há um sentido convencional nisso tudo, que todavia me faz querer estar inteiro. Sei que é ilusório como tantas outras coisas. Mas é preciso resistir às investidas. Resistir às condições inaceitáveis. Ao menos, deusa, é preciso acreditar que somos feito de algo mais do que enganos. Sabe aquela história do menino que tapa o dique rompido com o dedo, e evita a inundação da aldeia? Pois é.

Eu sei, todos nós somos porosos. Cestos de vime. Puçás. Eu vazo através de minhas contradições, - ou seriam paradoxos?-, me derreto em outras gentes, pego peixe miúdo, pitus mortos, e mal resisto a um afago, a uma verdade dita com assombro. Eu também minto, deusa. Eu falo mal de mim, falo mal da vida alheia, esconjuro minha descendência, minhas escolhas, maldigo meus feitos, renego minha raça, desmonto cada verdade que engoli pra continuar vivendo, disseco pessoas com precisão cirúrgica, deito um olhar crítico e amoroso sobre sujeitos em crise. Sou igualzinho a você.

Você leu a minha mão, e parecia estar me vendo. E o que resta, deusa, senão um coração insatisfeito? E o que fica, além de mim, brotando dos seus olhos? Além do desejo mais evidente? Como num quadro de Munch, uma figura triste, capturada, amarguradamente só, pedindo socorro sobre a ponte?

Você é esperta, deusa: caminha à minha frente, e destrói as pontes por onde passa. Atrás de você, em nítida desvantagem, eu fico com o trabalho duplicado. Tenho que recolher ruínas e construir novas passagens. Eu me perdi. Cansei. Fiquei desconcertado. Você é mais do que pedi a Deus, e certamente o que eu pedi não era nada disso. Acho que meu grito não foi alto o suficiente.

Sabe, deusa, eu me pergunto se ainda não gritei o bastante. Aprendi, faz pouco tempo, a me calar. A passar noites e dias refletindo, vagando por torpes paragens, gemendo num silêncio denso como um nevoeiro. Agora vem você, e esse desconcerto.

Escuta: não há lugar para tanta gente aqui conosco. Você parece uma van. Um ônibus lotado às seis da tarde. Também não há lugar aonde se possa ir sem dor. Lamento dizer, é assim que funciona. Talvez eu esteja errado. Não sei. Talvez você me ame, ou tema me encontrar de fato, ou tema se perder pelas alturas, nas brenhas do ciúme, da posse, da ilusão. Talvez você sinta medo.

Talvez você seja má, perversa, não consiga ver nada na sua frente. Mas você me chamou, deusa, e eu vim correndo. Você persegue um desejo retilíneo, contenta-se com isso, mas se perde tanto, deusa. E eu, ai de mim, fico aqui te imaginando.

Qual é minha morada, deusa, depois de te ver dormindo nua? Como isso pode ser nada? Como isso pode não te dizer mais do que um sopro, um passatempo contra o tédio?

Não te parece haver, aqui, uma inversão de papéis? Um carro na contramão? Um gosto adolescente pelo contrário? Você me caça, eu finjo ceder, embora resista. Você gosta. Eu, a puta fingindo ingenuidade. Tenso, eu me justifico, disfarço, enquanto você prossegue, e seu desejo parece explodir, falar mais alto do que todos os presentes. Que feição é essa, deusa, que você impõe à vida, a mim, a nós? Farsa? Emulação de macho? Honestidade?

Você quer dizer que eu não sou bom o bastante. Isso é antigo, deusa. Claro, há uma beleza cruel no que você faz. A diversão, o jogo, a irresponsabilidade, eles convencem. Você dá as cartas, estabelece as regras. Cobra escanteio e bate pro gol. Sai do marcador com habilidade.

É belo, sim, há um fulgor raro no que você pretende. Seduz. Fascina. Queria te seguir, mas tenho medo. Não me sinto seu o bastante para me deixar a tal ponto. E você, deusa, nunca cede. Não posso te jurar tanta imprudência.

O grito vem de novo, deusa. Não me larga. Eu achei que vínhamos juntos, deusa. Sinceramente. Achei que te queria tanto, certo, ainda te quero, muito, mas sonhei que iríamos juntos. Tem sido assim: eu acho que é preciso seguir, e me espatifo nos rochedos. A pele me dói, eu sangro outra vez, e poucas, como você, conseguem me entender. Eu vim até aqui em condições de evidente fragilidade. Não sobra outra escolha. Não te levar a sério, deusa? Ora, faça-me o favor.

Além do princípio do prazer? Uma senha, deusa, pelo menos me dê uma senha. Pra que eu volte a ser, mais uma vez, o que você disse que eu era. Ou achar que somos, finalmente. Você comanda gente demais por esses lados. Um bando de zumbis em busca de salvação, ávidos por teu sangue dourado. Você promete demais a essa gente, deusa. Por isso a multidão de sonhos, de zumbis reclamando, indóceis. Quem sabe eu não me junte a eles? Já pensou, deusa? Um coro de zumbis te maldizendo? Você pode imaginar consagração maior do que essa?

Pois eu te digo, deusa: eu não posso. E grito, não posso mais. Fico aqui, encantado por você. Um Munch tropical e exangue. E o que resta, deusa, senão um grito suspenso sobre a ponte, um mar azul-escuro abaixo, e este céu vertendo sangue?

* * *


Manoel Olavo

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