27 de janeiro de 2010
METAPOEMA III
As coisas
Emitem luz
Ignoram distâncias
Estão no meu jardim
E na
Macedônia
As coisas
São doces
Prestimosas
E votivas
As coisas rentes
Ferem o real
As capturadas
Morrem
As coisas revelam
O pacto entre
O sensual e o divino
As coisas
Todas elas
Carregam
Um pouco
De mim
Manoel Olavo
24 de janeiro de 2010
DOMINGO ENTRE A MONTANHA E O PORTO
Passo o domingo entre a montanha e o porto.
Os filhos vieram, a mesa foi posta,
A tarde nos rodeia num abraço.
(não há paixão, acabou a margarina, mas nada é perfeito).
Cozi memórias, reencontrei pedaços,
Peças preciosas que faltavam,
E posso estar a sós comigo.
Então, uma tranquilidade realista, inabitual,
Quase íntima, vem pra junto de mim
E eu vou com ela.
Ah, as emoções simples da vida...
Há um lado melancólico em mim,
Que fere, resiste a essa mudança...
Quem é que se senta nesta sala,
Aparentando calma, senão eu,
A minha elidida conseqüência?
Que fiz eu da minha vida? Hoje não importa:
Importa estar a sós, e poder estar aqui, comigo,
Nesse domingo entre a montanha e o porto.
Manoel Olavo
19 de janeiro de 2010
LEMBRANÇAS
Todos os acontecimentos, o desenrolar da sua biografia, sua origem e contingência, seus erros e escolhas, foram apagados, um por um. Tornou-se leve, banal, e sem sentido. Por que não pode um homem dispor da sua vida, conforme sua disposição e benefício?
Arrependimento, certeza, júbilo, tudo isso é somente uma construção. Tecem-se relatos a partir de escolhas, metas e disposições emocionais. No fundo, trata-se de uma tarefa interminável de autoilusão. A liberdade definitiva é desligar-se dos fatos que aparentemente compõem a nossa vida. Toda a dor, agonia, êxtase e injustiça reduzidos a componentes opcionais e intercambiáveis. Como jogos de armar.
A sensação de inteireza individual requer uma história pessoal contínua. E um passado que pareça determinístico. Tal biografia imaginária é mais uma dentre muitas fábulas que contamos, da qual continuamente nos queixamos, e contra a qual nos digladiamos, pois age como uma criatura que ataca seu criador. Não há realmente uma autonomia dos fatos: há, sim, autonomia do martírio.
A libertação exige uma tarefa colossal para destruir essa narrativa de reminiscências. Para expulsá-la. Pulverizá-la de vez. Uma vez desprendidos, soltos, é preciso um esforço adicional para impedir o retorno daquilo que, sem cessar, clama, grita, bate à nossa porta e quer nos explicar. A cada fato do passado renascido, extingue-se uma possibilidade de ser sobre a qual não refletimos.
Lutar, lutar. Tentar ficar de pé contra todas as evidências, como um gigante de pés de barro. Promover um cataclismo da memória. Fazer um esforço colossal para manter-se ereto, mesmo estando vazio, sem lembranças purulentas a nos preencher por dentro. É melhor esquecer, do que ser um jazigo...
Manoel Olavo
18 de janeiro de 2010
MÉTODO
Amar o incriado
Buscar o perdido
O raro, o extinto
É um modo sutil
De deter a carne
De ficar a sós
No jardim das coisas
De tirar poesia
De dentro delas
De encontrar beleza
Onde nada havia
Manoel Olavo
10 de janeiro de 2010
CEDO OU TARDE
Cedo ou tarde eu procuro o teu abraço
O teu alívio, afago, encantamento...
Tudo o que és me prende e me desfaço
Num toque de mão, em poesia e vento.
Cedo ou tarde, sem ti, eu perco o passo
Emparedado no mesmo momento.
O tempo só flui se passas. Eu faço
Brilhar teu ser como o quinto elemento.
Cedo ou tarde eu volto ao passo parelho
Da estrada de tijolos amarelos.
São teus sapatos, belos e vermelhos
Que eu sigo nesta trilha de farelos.
Como a flor que segue o sol; como um espelho
Perante outro, em infinitos elos.
Manoel Olavo
5 de janeiro de 2010
DEUSA
Não dá pra saber de onde vem esse barulho. Um uivo, um grito no ar, rachando o osso do céu, assim: crec!, com um golpe só.
Eu te perguntei por mim, porque me via o tempo todo nos teus olhos. Eu sabia de mim porque te escutava. Um espelho. Você me refletia como um som de almas enredadas. Você me dizia, deusa, lentamente me decifrava, e cada frase que eu ouvia me desmontava. Um beijo estalado na testa, as expectativas em suspenso, a mentalidade rara, inefável.
Há um sentido convencional nisso tudo, que todavia me faz querer estar inteiro. Sei que é ilusório como tantas outras coisas. Mas é preciso resistir às investidas. Resistir às condições inaceitáveis. Ao menos, deusa, é preciso acreditar que somos feito de algo mais do que enganos. Sabe aquela história do menino que tapa o dique rompido com o dedo, e evita a inundação da aldeia? Pois é.
Eu sei, todos nós somos porosos. Cestos de vime. Puçás. Eu vazo através de minhas contradições, - ou seriam paradoxos?-, me derreto em outras gentes, pego peixe miúdo, pitus mortos, e mal resisto a um afago, a uma verdade dita com assombro. Eu também minto, deusa. Eu falo mal de mim, falo mal da vida alheia, esconjuro minha descendência, minhas escolhas, maldigo meus feitos, renego minha raça, desmonto cada verdade que engoli pra continuar vivendo, disseco pessoas com precisão cirúrgica, deito um olhar crítico e amoroso sobre sujeitos em crise. Sou igualzinho a você.
Você leu a minha mão, e parecia estar me vendo. E o que resta, deusa, senão um coração insatisfeito? E o que fica, além de mim, brotando dos seus olhos? Além do desejo mais evidente? Como num quadro de Munch, uma figura triste, capturada, amarguradamente só, pedindo socorro sobre a ponte?
Você é esperta, deusa: caminha à minha frente, e destrói as pontes por onde passa. Atrás de você, em nítida desvantagem, eu fico com o trabalho duplicado. Tenho que recolher ruínas e construir novas passagens. Eu me perdi. Cansei. Fiquei desconcertado. Você é mais do que pedi a Deus, e certamente o que eu pedi não era nada disso. Acho que meu grito não foi alto o suficiente.
Sabe, deusa, eu me pergunto se ainda não gritei o bastante. Aprendi, faz pouco tempo, a me calar. A passar noites e dias refletindo, vagando por torpes paragens, gemendo num silêncio denso como um nevoeiro. Agora vem você, e esse desconcerto.
Escuta: não há lugar para tanta gente aqui conosco. Você parece uma van. Um ônibus lotado às seis da tarde. Também não há lugar aonde se possa ir sem dor. Lamento dizer, é assim que funciona. Talvez eu esteja errado. Não sei. Talvez você me ame, ou tema me encontrar de fato, ou tema se perder pelas alturas, nas brenhas do ciúme, da posse, da ilusão. Talvez você sinta medo.
Talvez você seja má, perversa, não consiga ver nada na sua frente. Mas você me chamou, deusa, e eu vim correndo. Você persegue um desejo retilíneo, contenta-se com isso, mas se perde tanto, deusa. E eu, ai de mim, fico aqui te imaginando.
Qual é minha morada, deusa, depois de te ver dormindo nua? Como isso pode ser nada? Como isso pode não te dizer mais do que um sopro, um passatempo contra o tédio?
Não te parece haver, aqui, uma inversão de papéis? Um carro na contramão? Um gosto adolescente pelo contrário? Você me caça, eu finjo ceder, embora resista. Você gosta. Eu, a puta fingindo ingenuidade. Tenso, eu me justifico, disfarço, enquanto você prossegue, e seu desejo parece explodir, falar mais alto do que todos os presentes. Que feição é essa, deusa, que você impõe à vida, a mim, a nós? Farsa? Emulação de macho? Honestidade?
Você quer dizer que eu não sou bom o bastante. Isso é antigo, deusa. Claro, há uma beleza cruel no que você faz. A diversão, o jogo, a irresponsabilidade, eles convencem. Você dá as cartas, estabelece as regras. Cobra escanteio e bate pro gol. Sai do marcador com habilidade.
É belo, sim, há um fulgor raro no que você pretende. Seduz. Fascina. Queria te seguir, mas tenho medo. Não me sinto seu o bastante para me deixar a tal ponto. E você, deusa, nunca cede. Não posso te jurar tanta imprudência.
O grito vem de novo, deusa. Não me larga. Eu achei que vínhamos juntos, deusa. Sinceramente. Achei que te queria tanto, certo, ainda te quero, muito, mas sonhei que iríamos juntos. Tem sido assim: eu acho que é preciso seguir, e me espatifo nos rochedos. A pele me dói, eu sangro outra vez, e poucas, como você, conseguem me entender. Eu vim até aqui em condições de evidente fragilidade. Não sobra outra escolha. Não te levar a sério, deusa? Ora, faça-me o favor.
Além do princípio do prazer? Uma senha, deusa, pelo menos me dê uma senha. Pra que eu volte a ser, mais uma vez, o que você disse que eu era. Ou achar que somos, finalmente. Você comanda gente demais por esses lados. Um bando de zumbis em busca de salvação, ávidos por teu sangue dourado. Você promete demais a essa gente, deusa. Por isso a multidão de sonhos, de zumbis reclamando, indóceis. Quem sabe eu não me junte a eles? Já pensou, deusa? Um coro de zumbis te maldizendo? Você pode imaginar consagração maior do que essa?
Pois eu te digo, deusa: eu não posso. E grito, não posso mais. Fico aqui, encantado por você. Um Munch tropical e exangue. E o que resta, deusa, senão um grito suspenso sobre a ponte, um mar azul-escuro abaixo, e este céu vertendo sangue?
* * *
Manoel Olavo
3 de janeiro de 2010
FONTE
Da fonte comum que rega nossos corpos
E almas, e afaga-os, e esfrega-os
E liga restos de luz a cores renascidas.
Oh celebrado sentimento de saber-se amado!
Da destruição, nós dois, estamos fartos.
Sabemos bem que obscuros gemidos
Não são suficientes para esquecê-la.
Restou porém uma pedra e uma árvore
E com elas fizeste um universo inteiro.
Restou porém uma vigília constante
E a ânsia de emergir dentre os destroços.
Tu e eu tanto sofremos, braços dados
Com o vazio, vendo partir quem não devia.
Tu e eu rondamos a face do terror
A densidade negra da vida desprezada
Na hora de chumbo em que mais nada ecoa.
(Mas celebrar a perda pode ser retê-la...)
Começar de novo, e sempre, à própria sorte
A jornada em que o fragor nunca é derrotado.
Aprender a rir da vida que é martírio e enlevo.
E, em seu dossel, poder quedar-se aflito
Atrás de alívio pra dor, de novos amores
Imprevistos desejos e acenos de madrugada.
Estranho é pedir amor empunhando letras!
Estranho é querer gritar e guardar no peito.
Estranho é chegar quase morto ao fim do dia.
De onde, afinal, jorra desta fonte o nascedouro?
Não estará entre lençóis macios o breve
Gesto de amor que um dia me negaste?
Manoel Olavo
VENTO ELÍSIO
Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...
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A nau - Debaixo dela Um mar de Rochedos e rotas Ondas Do mar: Um cristal Que se rasga A mão Inclinada Fende a Superfície ...
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Inverno Na dureza das palavras Inverno No breviário das sombras Inverno No equilíbrio das somas Inverno Lendo os próprios pensamentos Inver...
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Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...