27 de dezembro de 2020

ORFEU

Cansado de dormir e de acordar 

Sonhando-te, meu jugo e aspereza 

Que verso há de cantar o que queremos? 

Não pude te tocar, amor, não pude 

Não pude ser nem pássaro nem pluma 

Não pude ser nem sândalo nem chuva 

Por que sopras assim, ó brisa ambígua? 

Acostumada estás a natureza 

A refletir a sós entre os pinheiros 

A dominar dragões sobre as escarpas 

A ler no vendaval no fim do dia 

Difusas folhas brancas que tracejam 

Escritas formas vagas de desejo 

E modos de não ser somente minha 

Tu és embriaguez sobre meu dorso 

Vinhedo na estação de luz e sombra 

Cintilam em mim partículas de canto

Um anjo há de pairar sobre a calçada 

Saudade é despertar vendo-te morta 

Se não fosse perder a protegida 

Se não guardasse Orfeu a antiga forma 

Perdíamos de vez a voz e a lira 

Sonhar, mais que viver - eis o que somos. 


 Manoel Olavo

18 de dezembro de 2020

NADA


Nada.

 

Nem o

Apelo à musa.

 

Nem o lilás

Fruto maduro.

 

Nem a nota que

Completa a melodia.

 

Nem o sonho

Dentro d´água.

 

Nada

Te mostrará

A palavra

Certa.

 

Não há gesto

Que garanta

O encontro.

 

Apenas

Despe-te.

 

Sintas fome e sede

Como os bichos

E sejas tu.

 

Não há outro

Caminho.

 

A não ser

Despir-te

E se deslumbrar.

 

Manoel Olavo

4 de dezembro de 2020

PENSAVA NELA

 Pensava nela 
Enquanto cruzava a praça 
Cheia de gente aflita 
Com medo da pandemia 

Gente de máscara 
(muitos obscenamente sem) 
Mas eu só sabia dela 
Nem me lembrava da 
                          [pandemia 

 Enfim o verso completo 
O reverso da alma 
A história imprevista 
A canção precisa 

Ela é uma alea 
De flores cultivadas 
De plantas coloridas 
De arte, pão e poesia 

Arranjos geométricos 
Da beleza 
Mais desconcertante 
Que já pude ver 

 Eu já sabia 
Do nosso encontro 
Desse tempo parado 
Mil anos antes de acontecer 

Agora há o silêncio 
Sereno e imortal 
Da luz de minha 
Bela estrela 

 Manoel Olavo

28 de novembro de 2020

POEIRA E ESFINGES

Por ora fica adiada a primavera 

Fica suspenso o espetáculo 


 Não colherá jamais 

A indestrutível rosa 


 Não suportará tanta 

Tortura e lágrimas 


 Que espera você das coisas 

Se elas desmancham ao toque das mãos? 


 Se elas pendem indiferentes 

E se quebram como vidro? 


É preciso agir de outro jeito 

Pensar uma nova ordem 


A natureza tece tramas desiguais 

E seus olhos veem cores primárias 


 A mão do mal pousa do seu lado 

Mas você nem ao menos percebe 


 Como um ser tão imperfeitamente formado 

Deseja flutuar por nuvens à deriva? 


A vida aqui desembarca 

Sua dor entre coortes 


A paz é o caminho que aplaca 

Sua febre sem remorso 


 Seu mapa de ruínas 

Seu juízo torto de erros cometidos 


E pra você, que só vê 

Poeira e esfinges 


 Qualquer instante de luz 

Será inútil e indecifrável 


 Lúcifer disfarça 

Ser o preferido de Deus 


 Manoel Olavo

21 de novembro de 2020

MUDAS DE ROMÃ

 Como quem planta mudas de romã

No terreno para isto destinado

Hei de ficar, exato e coerente,


Rente ao silêncio, à espera de você

 


Como quem planta mudas de romã


Cultivo o verso pacientemente


(Isto, que me revela e me esconde


E me leva para junto de você)


 

Manoel Olavo

NÃO SE SUICIDE


I

Espere, não quero

Que você se suicide


É preciso estar

Entre os viventes


Talvez fosse melhor

Ficar em casa                                                                                          


Longe do laço 

Mortal dos afetos


Expandindo

O seu silêncio


Parece pouco, eu sei

(A eternidade que consola)


Um flanco aberto

Na cadeia de contrários


Lá, outra vez,

Vai brotar a angústia 


II


O amor vem

Em meadas


Convoca e,

Depois, esmaga


Talvez viva de

Histórias desfeitas


III


Pouco a pouco

Voltará ao mundo


Sublunar, coberto

De escombros


Pouco a pouco

Voltará ao mundo


Feito para resistir

Ou ficar à margem


Questão de tempo

E de vocação caseira


IV


Há uma fome

          Em mim

E ela prenuncia


Outra forma:

O fora da lei


A fagulha no

Raso do rio


O gozo antes

Do último grito


O vazio antes

De qualquer origem


V


Espere, não se suicide

Faz sol em seu poema


Manoel Olavo

10 de outubro de 2020

NUM ÚNICO PONTO



E todas as coisas se condensaram

Num único ponto. Ali estava a vida

Inteira, resumida, pormenorizada.

O tempo desabou, como grama  

Cortada pela lâmina da adaga.  


Acabou o esforço inútil de buscar

A identidade, a explicação, a parte

No todo, o antes e o depois. Domada,

A necessidade sumiu, o seu peso

Ficou leve. A luta se interrompeu.


Livre, tomado de luz, eu caminhei

O mais silenciosamente que pude.

Não compreendi o que podia ver.

O que chegava à minha pupila

Era o reflexo anterior de tudo.


Manoel Olavo

10 de setembro de 2020

NO AR


Desfeito em ti 
Tornei-me parte
Do mundo, das
Forças colossais 
Do chão, do ar 
Do mar, da chama 

Eu as ouço, elas 
Estão aqui comigo

Sabedor de ti 
Mesmo sem vê-la
Eu posso te falar
Onde tudo é silêncio 

Eu sei de orvalhos, firmamentos 
Pássaros azuis, anjos dormindo

Capturo os sinais 
Ouço a tua voz sonhando 
Posso decifrar enigmas 
E te querer só minha 

Desejo, meu amor 
Te contar histórias
(Somos emissários delas) 
Tu e eu, leves, no ar 
Entre vagas de astros 

Manoel Olavo 

19 de agosto de 2020

A MENINA E O POETA


A menina e o poeta. Ela era o seu sonho tornado substância. Soube disso quando a viu pela primeira vez. Podia lhe dizer, com tranquilidade: vem. Sua presença é inconfundível. Você chegou como o centro duma galáxia, extinguiu os outros astros, apagou as estrelas adjacentes. Seu lugar estava pronto. Só o silêncio o interrogava.


A menina e o poeta. Dois corpos que, à distância, se comunicavam. Não como posse, mas como sortilégio. Algo que saía dele a alimentava, ia e vinha, e voltava em forma de vida renovada.


Aqui e ali, ele descobria pedaços dela enterrados na sua carne, como camadas geológicas, como dois seres em interseção. Às vezes, ele mal se reconhecia.


Como viver assim sem fronteiras? No entanto, ela o ensinava. Ele, surpreso, aprendia.


Ela era uma presença constante, uma multidão de lembranças. Uma presença líquida que purificava. Uma sede de afagos. Uma festa de abraços. 


Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço? Premissa falsa: podem, sim. A existência é um milagre. Uma aventura.


Como ela podia viver assim, tão sensível, com tanta dor à mostra? Porém, ele sabia a resposta. Ele, que catou os pedaços de si mesmo sob a mesa, no porão, no lixo, no fundo da alma, juntou tudo e limpou o sangue dos cacos do eu em pedaços. Ele sabia a resposta. 


Entretanto, ela já nasceu sabendo. Sabia lutar.


Ela era mais que um curso veloz, que uma fúria, que um grito de abandono. Era um arremate. Uma invasão bárbara. Um risco no céu. A mais real das irrealidades. Ela era o seu êxtase e abismo, seu arabesco de sonhos e desastres. Era uma menina procurando a saída entre os estilhaços.


Talvez ela fosse apenas um ensaio do que o mundo seria se não houvesse tantas armadilhas. Do que o mundo seria se, um dia, a beleza triunfasse.


Manoel Olavo

29 de abril de 2020

PELA PRIMEIRA VEZ



A voz que diz o verso e a canção
Tem repetido mil vezes que te ama

A cada vez que faminto eu te penetro
Uma alegria enorme explode no meu peito

Teu olhar, raio súbito, se congela
Na mais linda imagem jamais capturada

Assim dia a dia nos entrelaçamos
Meu definitivo e meigo amor de ancas largas

Num fabuloso mistério de almas confluentes
Assim suspiro teus cabelos louros e teu ventre

Num desejo puro de quem foi tocado
E finalmente amou pela primeira vez.

Manoel Olavo

24 de fevereiro de 2020

MEU DESEJO REFLETIDO


As coisas que procuro não tem nome.
No entanto, sei que tens todas elas.

As coisas que procuro não são visíveis.
No entanto, sei que tem suas formas e cores.

Sinto medo de ti e deste nosso amor
Que de noite se transforma em saudade e versos.

Porém, só posso dizer te amo, amo, amo
Interminavelmente – para o medo ir embora.

Promete-me que ficarás comigo
Até que o por-do-sol nos surpreenda.

Ainda que não seja um céu de maio
Neste amor que agora amanhece.

Eu saberei te amar, fada, borboleta,
Ser elemental, ventania nas folhas,

Luz fugaz no monte nevado. E verei, dentro de
Teus olhos, num espelho, meu desejo refletido.

Manoel Olavo

ARTIFÍCIO



Além
Após passar o dorso
Pela fresta da muralha

O artifício
A queda no abismo

Pois eu estive lá
Eu vi o dia devastado

Vi o sangue seco
Num corpo de pó e vidro

Vi a caldeira acesa
O peso do silêncio
A noite sem cor da lâmina invisível

Como pude não enternecer o coração?
Como pude ignorá-lo?

Me beijaste e foi muito pior
Do que te haver desejado

Cansado
Após passar o dorso
Pela fresta da muralha

Tudo o que vejo agora é o mar na minha frente


5 de fevereiro de 2020

SOBRE O ABISMO


Em cima da ponte nos equilibrávamos.
Éramos nós dois balançando no vento.
Abaixo era o rochedo nu e escarpas
Sanguíneas. Do céu, uma imensa ave
De rapina nos atacava. Mas
Lutávamos bravamente.
Aquilo que pensávamos ser,
O que víamos um no outro,
(Não o que éramos de verdade)
Haveria de nos salvar.

Manoel Olavo

15 de janeiro de 2020

ALGUM LUGAR



Eu já cantei
Mas hoje
Estou ausente

Talvez aqui
Ou longe
Em algum lugar

Haja um oceano ignorado
Onde o dia arrebente
De tanta poesia

E uma ave possa
Voar em paz:
Efeito das asas

E o amor possa
Vir em paz:
Efeitos das almas

Manoel Olavo

VENTO ELÍSIO

Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...