19 de agosto de 2020

A MENINA E O POETA


A menina e o poeta. Ela era o seu sonho tornado substância. Soube disso quando a viu pela primeira vez. Podia lhe dizer, com tranquilidade: vem. Sua presença é inconfundível. Você chegou como o centro duma galáxia, extinguiu os outros astros, apagou as estrelas adjacentes. Seu lugar estava pronto. Só o silêncio o interrogava.


A menina e o poeta. Dois corpos que, à distância, se comunicavam. Não como posse, mas como sortilégio. Algo que saía dele a alimentava, ia e vinha, e voltava em forma de vida renovada.


Aqui e ali, ele descobria pedaços dela enterrados na sua carne, como camadas geológicas, como dois seres em interseção. Às vezes, ele mal se reconhecia.


Como viver assim sem fronteiras? No entanto, ela o ensinava. Ele, surpreso, aprendia.


Ela era uma presença constante, uma multidão de lembranças. Uma presença líquida que purificava. Uma sede de afagos. Uma festa de abraços. 


Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço? Premissa falsa: podem, sim. A existência é um milagre. Uma aventura.


Como ela podia viver assim, tão sensível, com tanta dor à mostra? Porém, ele sabia a resposta. Ele, que catou os pedaços de si mesmo sob a mesa, no porão, no lixo, no fundo da alma, juntou tudo e limpou o sangue dos cacos do eu em pedaços. Ele sabia a resposta. 


Entretanto, ela já nasceu sabendo. Sabia lutar.


Ela era mais que um curso veloz, que uma fúria, que um grito de abandono. Era um arremate. Uma invasão bárbara. Um risco no céu. A mais real das irrealidades. Ela era o seu êxtase e abismo, seu arabesco de sonhos e desastres. Era uma menina procurando a saída entre os estilhaços.


Talvez ela fosse apenas um ensaio do que o mundo seria se não houvesse tantas armadilhas. Do que o mundo seria se, um dia, a beleza triunfasse.


Manoel Olavo

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