27 de dezembro de 2020

ORFEU

Cansado de dormir e de acordar 

Sonhando-te, meu jugo e aspereza 

Que verso há de cantar o que queremos? 

Não pude te tocar, amor, não pude 

Não pude ser nem pássaro nem pluma 

Não pude ser nem sândalo nem chuva 

Por que sopras assim, ó brisa ambígua? 

Acostumada estás a natureza 

A refletir a sós entre os pinheiros 

A dominar dragões sobre as escarpas 

A ler no vendaval no fim do dia 

Difusas folhas brancas que tracejam 

Escritas formas vagas de desejo 

E modos de não ser somente minha 

Tu és embriaguez sobre meu dorso 

Vinhedo na estação de luz e sombra 

Cintilam em mim partículas de canto

Um anjo há de pairar sobre a calçada 

Saudade é despertar vendo-te morta 

Se não fosse perder a protegida 

Se não guardasse Orfeu a antiga forma 

Perdíamos de vez a voz e a lira 

Sonhar, mais que viver - eis o que somos. 


 Manoel Olavo

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