Não
sei de onde eles vieram. Apenas sei que chegaram, e eram muitos. Ocuparam
pacientemente todas as ruas, todas as casas, todas as almas, a cidade parou de
circular em paz. Nenhuma
fresta ficou livre. Nada arejava, nada respirava entre os interstícios.
Era da
natureza deles agir assim, preenchendo todos os vazios, obstruindo a luz. Não
deu tempo de gritar, ninguém se insurgiu. Todos se calaram. Eles vieram,
displicentes, entraram nos espaços, achataram reentrâncias, nivelaram tudo e o
vazio se desfez.
Sinto
falta do vazio. Também sinto saudades do silêncio. Do que não é, do que ainda não está. Parece que tudo quer brilhar, tudo quer sair da sombra. Tudo precisa
estar pronto, corrigido, provado, há uma agitação confusa nisso tudo, e eles
querem que seja assim. Mas nem tudo pode ser assim, tanto. Eu lhes garanto. Por
isso, deu no que deu: não há mais vazio.
Eu
vou morar no vazio. Nos meus vazios. Decidi me recolher para sempre. Vou me
isolar no meu pequeno apartamento, um quarto, a cama, uma saleta mínima, banheiro,
cozinha. Tudo precário e mal cuidado. Móveis antigos, poucos, madeira escura, o
teto tão alto que não dá pra alcançar. Vou viver do que me falta.
Não
saio mais à luz do dia. Nem de noite. Não volto à cidade. Dá pra pedir tudo
pelo telefone. Pagar pelo computador. Vou fechar portas e janelas. Ficarei
aqui, tentando refazer o meu caminho, tudo o que eu já vi e vivi. Tentando sentir o
que me forma. Tenho todo o tempo do mundo pra isso. Vou me lembrar de cada
momento, de cada encontro, de cada pessoa, de cada palavra dita ou ouvida, de
cada acontecimento, de cada verdade morta e renascida.
Vou
recolher tudo em folhas de papel almaço, milhares delas, minhas lembranças perdidas.
Pacientemente, vou escrever cada uma delas a mão. Depois, vou reunir as
lembranças em blocos, e amarrar cada bloco com uma fita colorida. Com esses
blocos, vou erguer torres de memórias dentro de casa. Ainda vou decidir mais
adiante, mas cada fita terá uma cor especial, cada época diferente do meu
passado vai ter uma cor que a identifique.
Aqui
devo ficar em silêncio, escrevendo, lembrando, coligindo dias e anos, seguindo
o ritmo de um tempo só meu, alheio às coisas, alheio à ansiosa solicitude da
vida. Acima de tudo, estarei livre deles. Livre do seu insuportável
preenchimento. Voltarei a ser, depois deles virem...
Dormirei,
acordarei, tomarei banho, farei comida e sonharei feliz, entre torres dessa
memória reerguida, organizadas por cor e por cronologia, volumes simétricos
contendo relatos de minha existência. Parece pouco, eu sei, mas, pelo menos,
vou estar livre deles. Não sei se me salvo. Mas, ao menos, por um tempo, não me
contamino.
Manoel Olavo
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