23 de setembro de 2012

NEM QUE ME MANDASSEM


 Nem que me mandassem pra longe dali, pra depois da curva dessa rua, pra depois do rabo da Quinta Avenida, aonde o asfalto termina, e é só lixo e sangue e tosse e gente rodeada de lama, nem que me mandassem pra depois do limite do mundo, pro fim da linha, pro outro lado da fronteira das eras e, no entanto, é ali bem perto;
Nem que eu fosse até ali, até o alto do morro espetado de antenas, de casebres, na penumbra da viela mal-iluminada, e desse as costas à rua que, bem ou mal, eu já conheço, e faço questão que esteja comigo, pois meu coração só vai até os confins deste bairro, só vai até onde está o reflexo, o eco, o eito, passou dali é tudo maldição, é senda, é outro território, passou dali o trem desanda sobre os trilhos, se enche de gente que não foi convidada;
Nem que me mandassem pra depois da estação aonde eu desço, nem que me mandassem pra depois da piscina, do banquete de restos, pro lado de lá dos quintos dos infernos, eu juro que não ia, ah não, eu fugia, pois, passou dali, é tudo gente má, chinfrim, cheirada, possuída, gente matando por cigarro, gente tirando o rim das criancinhas, roubando bebês no shopping, bolinando filhos, gente vil, rampeira, x-9;
Nem que eu me embrenhasse na floresta, voltasse pro meio do mato, quando éramos bons, colhíamos frutos e raízes, voávamos como aves, amávamos sem culpa e vivíamos embriagados de bálsamo, malgrado algum canibalismo, conflitos tribais e o gosto do moquém dos vencidos, mas, tudo bem, antes tivéssemos continuado assim, contentes com tudo, autênticos, invioláveis, unidos num tempo anterior à deflagração, anterior ao fim da rua, antes de bater toco por aí, sem mapa nem território.

Manoel Olavo

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