27 de setembro de 2012

UM POEMA SIMPLES



Eu quis escrever um poema simples
Igual ao que levo aqui no peito:
Esta falta de ar, este salão vazio,
Este xis de viver longe de você.
Não é desespero de letra de tango,
É um mal-estar de beira da roça,
Uma dor fininha como dor de dente
Que aperta na alma, não deixa
Deitar no sofá pra assistir TV,
Não deixa ler um livro e dá uma
Vontade de correr não sei pra onde,
Emigrar pra Alemanha, casar com galega,
Jogar mijo nos garotos do playground.
Sempre aparece um espírito de porco
Pra dizer: “Sua vida está boa, do que reclama?”
Sim, eu sei. Houve conquistas, reina a paz
Entre as falanges. Há mantimentos
Estocados, as fogueiras estão acesas.
Tudo bem no melhor dos mundos possíveis.
A vida pode estar boa, mas não me convence.
Volta e meia, a dor fininha vem, crava, não passa.
Dela não se escapa, pois veio antes de mim.
No fundo, tudo isso é nó, é dó de mim,
É mau jeito, é o mal confuso de viver
Assim tão só: sem sal, sem sol, sem você.

Manoel Olavo

25 de setembro de 2012

O QUE IMPORTA


De que vale o silêncio
A leveza o segredo
Se o que importa
É ver-te?

Amada senhora
Fugidia sombra
Vênus do porão
Das letras

Hei de encontrar-te
Um dia a sós
Onde a terra acaba
E o amor começa


Manoel Olavo

TORRES DA MEMÓRIA



            Não sei de onde eles vieram. Apenas sei que chegaram, e eram muitos. Ocuparam pacientemente todas as ruas, todas as casas, todas as almas, a cidade parou de circular em paz. Nenhuma fresta ficou livre. Nada arejava, nada respirava entre os interstícios.
Era da natureza deles agir assim, preenchendo todos os vazios, obstruindo a luz. Não deu tempo de gritar, ninguém se insurgiu. Todos se calaram. Eles vieram, displicentes, entraram nos espaços, achataram reentrâncias, nivelaram tudo e o vazio se desfez.
            Sinto falta do vazio. Também sinto saudades do silêncio. Do que não é, do que ainda não está. Parece que tudo quer brilhar, tudo quer sair da sombra. Tudo precisa estar pronto, corrigido, provado, há uma agitação confusa nisso tudo, e eles querem que seja assim. Mas nem tudo pode ser assim, tanto. Eu lhes garanto. Por isso, deu no que deu: não há mais vazio.
            Eu vou morar no vazio. Nos meus vazios. Decidi me recolher para sempre. Vou me isolar no meu pequeno apartamento, um quarto, a cama, uma saleta mínima, banheiro, cozinha. Tudo precário e mal cuidado. Móveis antigos, poucos, madeira escura, o teto tão alto que não dá pra alcançar. Vou viver do que me falta.
            Não saio mais à luz do dia. Nem de noite. Não volto à cidade. Dá pra pedir tudo pelo telefone. Pagar pelo computador. Vou fechar portas e janelas. Ficarei aqui, tentando refazer o meu caminho, tudo o que eu já vi e vivi. Tentando sentir o que me forma. Tenho todo o tempo do mundo pra isso. Vou me lembrar de cada momento, de cada encontro, de cada pessoa, de cada palavra dita ou ouvida, de cada acontecimento, de cada verdade morta e renascida.
          Vou recolher tudo em folhas de papel almaço, milhares delas, minhas lembranças perdidas. Pacientemente, vou escrever cada uma delas a mão. Depois, vou reunir as lembranças em blocos, e amarrar cada bloco com uma fita colorida. Com esses blocos, vou erguer torres de memórias dentro de casa. Ainda vou decidir mais adiante, mas cada fita terá uma cor especial, cada época diferente do meu passado vai ter uma cor que a identifique.
            Aqui devo ficar em silêncio, escrevendo, lembrando, coligindo dias e anos, seguindo o ritmo de um tempo só meu, alheio às coisas, alheio à ansiosa solicitude da vida. Acima de tudo, estarei livre deles. Livre do seu insuportável preenchimento. Voltarei a ser, depois deles virem...
            Dormirei, acordarei, tomarei banho, farei comida e sonharei feliz, entre torres dessa memória reerguida, organizadas por cor e por cronologia, volumes simétricos contendo relatos de minha existência. Parece pouco, eu sei, mas, pelo menos, vou estar livre deles. Não sei se me salvo. Mas, ao menos, por um tempo, não me contamino.

Manoel Olavo

23 de setembro de 2012

NEM QUE ME MANDASSEM


 Nem que me mandassem pra longe dali, pra depois da curva dessa rua, pra depois do rabo da Quinta Avenida, aonde o asfalto termina, e é só lixo e sangue e tosse e gente rodeada de lama, nem que me mandassem pra depois do limite do mundo, pro fim da linha, pro outro lado da fronteira das eras e, no entanto, é ali bem perto;
Nem que eu fosse até ali, até o alto do morro espetado de antenas, de casebres, na penumbra da viela mal-iluminada, e desse as costas à rua que, bem ou mal, eu já conheço, e faço questão que esteja comigo, pois meu coração só vai até os confins deste bairro, só vai até onde está o reflexo, o eco, o eito, passou dali é tudo maldição, é senda, é outro território, passou dali o trem desanda sobre os trilhos, se enche de gente que não foi convidada;
Nem que me mandassem pra depois da estação aonde eu desço, nem que me mandassem pra depois da piscina, do banquete de restos, pro lado de lá dos quintos dos infernos, eu juro que não ia, ah não, eu fugia, pois, passou dali, é tudo gente má, chinfrim, cheirada, possuída, gente matando por cigarro, gente tirando o rim das criancinhas, roubando bebês no shopping, bolinando filhos, gente vil, rampeira, x-9;
Nem que eu me embrenhasse na floresta, voltasse pro meio do mato, quando éramos bons, colhíamos frutos e raízes, voávamos como aves, amávamos sem culpa e vivíamos embriagados de bálsamo, malgrado algum canibalismo, conflitos tribais e o gosto do moquém dos vencidos, mas, tudo bem, antes tivéssemos continuado assim, contentes com tudo, autênticos, invioláveis, unidos num tempo anterior à deflagração, anterior ao fim da rua, antes de bater toco por aí, sem mapa nem território.

Manoel Olavo

20 de setembro de 2012

ODALISCA



Odalisca, seus olhos pareciam tão cansados. Você não é quem eu pensava ser. Talvez nunca tenha sido. Era engano. Só tinha o peso enorme que você carregava. Tanta coisa pra dizer, tanta coisa pra mostrar, tanto cuidado com o que os outros pensavam. Tudo falso. Muita coisa aparente, mas nada por debaixo. Só fúria e silêncio.
Odalisca, você se perdeu. Ficou enterrada numa porção de coisas de que não precisava, perdida numa pilha de produtos. Sapatos demais. Tentou ser culta, jovem, glam, hype, fashion, clean, up-to-date, descolada, enfant terrible, emergente, marginal, viciada, fin-de-siècle, clubber, gata, cocota... Je suis desolée, mas não, obrigado. É desespero demais, é mentira demais, essa noite não termina. Nada em você é de verdade, salvo o encanto das palavras e a imagem se movendo ávida. Pobre Odalisca, queria tanta coisa, mas se perdeu no caminho de volta. Tenho pouco a lhe dizer. Odalisca, que fizeram com você?

Manoel Olavo

3 de setembro de 2012

É MEIA-NOITE DE UM DIA DE ABRIL



É meia-noite de um dia de abril
E eu estou quase morto

Talvez você possa me ajudar
Se eu lhe disser a verdade

Se entre dentes eu lhe contar
O mito sentimental que deixei de lado

Contar como é difícil
Apagar miragens

Deter as coisas imaginadas
Comê-las vivas,

Ignorar a sombra
Que encobre a manhã

Amores ternos, encontros trêmulos
Serões, anéis, gemidos

É duro ofício
Achar alguma substância

Tentar ser íntegro, coerente
Mas você não vem, eis a verdade...

Eu quase morto
Arrefeço e então me calo

Opaco como um olho de cadáver
Como um punhal, uma alça de esquife

Tanto pragmatismo fere, desconcerta
Antes havia sonho em mim
Agora, nada

Não foi você
Não foi o amor
Quem me deixou assim foi a vida


Manoel Olavo

VENTO ELÍSIO

Lento e minucioso meu sopro caminha Por seu corpo nu pele branca à mostra. Eu, Elísio, vento soprando na fresta Inspeciono cada ponto oculto...