As coisas podem estar mais próximas. Mas, se ficam perto demais, ferem. Proximidade demais machuca.
Eu tenho a hora da caverna. A hora do morto. Preciso estar em silêncio, a sós, no quarto, num recolhimento protegido.
O esforço para aguentar o alarido das coisas, a brutalidade das pessoas, é tanto, que preciso de um tempo para refazer a casca. Pode ser longo. Na maioria das vezes é inútil.
Eu sempre sangrei e me desfiz em meio às coisas. Sempre penei no jogo social. Desde que consigo me lembrar, era atravessado pela opulência excessiva delas.
É difícil falar sobre este incômodo. Parece haver um pacto entre as pessoas para ignorar isso. Mas eu não assinei.
Há 10 anos, parei de tentar. Juntei os cacos, fechei o comércio, vários pelotões tinham sido dizimados, e fiquei ali, sozinho, entre a intenção de ser e a derrocada. Um exército que desiste da ocupação. Eu me tranquei em casa, de um jeito parecido com para sempre. Tirei o fone do gancho. Mandei a moça avisar que eu tinha saído.
Tentei aprender a me proteger voluntariamente. Aparecer o mínimo necessário. Fechar o vidro da janela. Tentar o truque de parecer estar ali, não estando. Rasgar o véu das aparências, desvendar a mitologia dos fatos. Descer do pedestal e lamber o chão das derrotas. Ser duro e evitar o encontro, antes de perder sangue. O inferno são os outros. Ele tinha razão.
A solidão deixou de ser uma contingência, virou uma escolha. E, conforme eu insistia, a dor de estar ali despido, rachado, traído, distante, só, fez o mal-estar diminuir . Ficou mais confortável. Não foi mérito, não. Foi puro desespero.
Contudo, há o preço de estar sozinho. Não assusta, mas provoca desconforto social: uma dor de viés que vem dos outros.
O mundo parece uma festa vulgar ao arrepio da lei. Todos parecem estar se divertindo. Todos parecem um destroyer num desfile náutico. Eu vou me virando com meu bergantim.
Se há algo capaz de irritar é quando todos assobiam, felizes, por cumprir o dever de casa. Pra gente lá fora, é uma festa de corpos e falas. Pra mim, é uma maldição.
Fiquei trancado dentro de casa, em segredo. Nem isso eu contei.
Não quero dar a impressão de que dominei a arte da retirada. Não é isso. Continua sendo tão enigmático quanto era antes, quando eu tinha nove anos de idade e fugia do colégio, assustado, e ficava na esquina olhando a parede, coletando as cinzas. Hoje só entendo melhor.
Há 2 anos, voltei a arriscar pequenas incursões ao continente. Expedições de reconhecimento a uma terra desconhecida. Mas o barulho e a brutalidade continuavam. Pareciam ter piorado.
No entanto é preciso prosseguir, antes que venham as sombras. Não sei ser amigável. Posso, no entanto, gritar tão alto quanto os demais. Não tem sido necessário.
Eu preciso distinguir se o que vejo é árvore ou miragem; se a dor é palpável ou ilusória. Substância demais, pra tão pouco sonho...
Manoel Olavo
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