- “Atingir o ideal? Como assim? O
ideal é um negócio inatingível. Não foi feito pra ser alcançado. É um ideal,
pomba, o nome está dizendo. Foi feito pra tentar, não pra existir. Toda procura
de ideal está condenada ao fracasso. É assim no amor. Nós tentamos formas
ideais de amar. Só isso. Se conseguiremos algo? Não sei. Mas, com certeza, sairemos
frustrados”. – Ele estava surpreso com a clareza de suas palavras. Havia um sentido de autoridade nelas, algo que não planejara. Mais do que isso, havia convicção.
À sua frente, a mulher o ouvia com atenção. Então ela respondeu:
- “Quer dizer que nós devemos
desistir? Não adianta lutar por um relacionamento mais feliz, mais verdadeiro? É
por isso que você está cada vez mais distante e voltado pro seu próprio umbigo?”
– O tom, como de costume, era de cobrança. Irritado, ele disse:
- “Cada um deve cuidar
de seu próprio inferno. Não adianta fingir comunhão. Só eu sei dos meus motivos
e necessidades. Não vou me dedicar a um ideal de casal que me constrange. Que
não passa de uma convenção social. Trágico é você acreditar na mitologia social
da felicidade a dois”.
Ele
sabia como irritá-la durante uma discussão. Bastava assumir uma postura didática
ou violentamente racional. Ela ficava com cara de ódio, cara de aluna humilhada
pela oratória do professor – ou seria inveja? De todo modo, ele às
vezes fazia isso só pra provocar. Desta vez, não. Parecia acreditar no que dizia.
E talvez fosse mesmo verdade.
- “Você se recusa a
lutar por nós!” – ela respondeu – “Não dá pra viver com alguém como você. Não
dá pra se agarrar em justificativas racionais o tempo todo. Você se esconde por
detrás das ideias. Não sente nada, se esconde atrás de argumentos. Usa a lógica
pra não se comprometer!”.
Ele
sabia que ela estava certa. Ele realmente se escondia. Por comodismo, por fuga,
por desconhecimento. Mas o que importa? Quem consegue expor exatamente a
natureza do que pensa e deseja aos outros? Quem é sincero a tal ponto? Todos
nós nos escondemos atrás de ideias, de personagens; inclusive ela, eternamente protegida
pela máscara de feminista-capaz-de-demonstrar-emoções-e-desejos. Uma farsa como
as demais. Um clichê politicamente correto. Quanto às emoções, ele raramente as
distinguia. Na maioria das vezes, variavam entre a dor e o incômodo.
Em
seguida, ele voltou à carga: - “O que é um amor ideal? É uma abstração! Você quer
um homem que não existe, um companheiro pré-fabricado de teste de revista
feminina. Homem nenhum vai falar pra você de sonhos e frustrações, homem nenhum
vai discutir zonas erógenas. Homem nenhum vai ter saco pra ouvir você falar de
antigos namorados. Eu entendo a necessidade de ideais, respeito-os; mas seu
ideal de homem é escroto. Portanto, indefensável” – Seu tom de voz se alterava
e as palavras ácidas eram um convite para uma briga sem disfarces.
“O problema é que você
não suporta frustrações” – ele continuou. – “A mocinha feminista não se
conforma que eu seja um homem real, com defeitos. Fica frustrada porque eu não
correspondo ao seu modelo de homem, algo entre uma melhor amiga do colégio e um
cabeleireiro que ouve problemas enquanto alisa os seus cabelos. Eu não sou
assim, detesto a conversa fiada feminina. Sou a favor da criminalização do sentimentalismo!”.
Um golpe, depois outro. A vontade era de acertá-la sem parar, deixá-la tonta, jogá-la
nas cordas. Mas ela não desistia. Sua força parecia aumentar conforme era
fustigada. Talvez por isso ela gostasse tanto de discussões intermináveis sobre
a vida de casal. Nada além do velho masoquismo coloquial. Então ela revidou:
- “Você está sendo
sarcástico pra fugir da discussão. Conheço sua estratégia. O que eu quero é
melhorar o nosso relacionamento. Apostar em nós. Quem disse que eu não suporto
frustrações? É só o que eu faço em nosso casamento! Sempre te convencendo a falar
sobre os problemas. Sempre suportando seu mau-humor, sua indiferença. Sempre
tentando aparar arestas. Sempre pronta para te ouvir, enquanto você fica distante
quando eu falo de mim. Você quer transformar seu egoísmo numa forma de realismo
refinado, mas isso não é verdade” – ela lhe disse, enumerando uma série de atitudes
onde apenas o esforço dela aparecia. Na lista, ela recebia o papel “daquela que
realmente se importa com a relação”. Ele não passava de uma criança birrenta. Nisto
baseava-se a sua percepção. Era tudo o que
ela pretendia salvar. As boas intenções femininas, ele já compreendera, eram bombons
envenenados. Ademais, como poderia discutir com alguém que tem o monopólio das virtudes
morais?
- “Egoísta!” – ela disse, a
palavra soando como a pior das acusações. - “Você é um egoísta”, - ela repetiu - Era o golpe
fatal, a ferida que latejava a cada pronúncia. O contrário desta
acusação, é claro, era o exemplo comovente que ela dava: candura, sacrifício, desinteresse,
dedicação generosa. Como discutir nesses termos? Não podia entrar num jogo em
que já começava perdendo. “Quer saber? Foda-se você e a sua bondade!” - Saiu enfurecido,
batendo a porta.
* * *
Mais tarde, enquanto andava pelo
aterro, olhou as palmeiras distribuídas simetricamente sobre o gramado verde. -
“Um jardim planejado como este” – pensou, – “pode ser bonito. Mas perde a
espontaneidade. Não tem a beleza imprevisível dos arranjos naturais. O mundo devia ser assim: espontâneo” - continuou pensando.
- “Nossa racionalidade
atrapalha tudo. A vontade de organizar o mundo violenta a vida.” – conjecturava.
“A razão humana é uma doença. Um vírus incapaz de perceber a sua patogenia –
como, aliás, devem ser os vírus. A ânsia de compreensão transforma
relacionamentos num jogo esquemático de estereótipos, numa comédia de erros
onde os parceiros fazem uma coisa, pensam outra e dizem uma terceira. O cinismo
é a única maneira de suportar algo assim. Cinismo e manipulação. Mas eu não sei
jogar o jogo do cinismo, nem sou ardiloso o bastante para manipular. Nada disso
me interessa” - concluiu, enquanto caminhava.
Um pouco mais
adiante, atravessou a faixa de areia à beira-mar. Começou a andar pelo calçadão
de pedras portuguesas. Estava transtornado. Não parava de refletir sobre a
existência de uma entidade tão absurda como o casamento. - “Como puderam
conceber um negócio tão inviável?”, pensou. “Um homem e uma mulher, numa
competição diária, onde não deveria haver disputa. Uma prisão sem duração
definida. Um chiqueiro de porcos, onde quem está dentro quer sair e quem está fora quer entrar. Um jogo de poder sem sentido, sem regras, sem vencedores. As
mesquinharias da convivência. A espuma das emoções febris. A mecânica do desempenho
sexual. O apogeu do tédio”.
- “Deve haver alguma
solução” – pensava. Sentia-se culpado, a angústia crescia. Ele precisava se
esforçar pra atingir o ideal que ela sonhava. Abrir mão do egoísmo. Enfrentar a
intimidade. Entender suas emoções. Aproximar-se dela. Já tentara antes, muitas
vezes. Sempre foi inútil. Mas era preciso corresponder. Há um ideal vindo de
fora, um ideal que nasce dela. É preciso ser um homem de verdade. É preciso
inventar um novo modo de ser. Alguém diferente surgirá do desastre. Era isto, estava
decidido! Ela iria ficar contente. É preciso agradecer à mão que ergue o machado
pra nos decapitar.
Enquanto
organizava os pensamentos, notou que suas pernas vacilavam e alguma coisa
começava a prender os seus pés no chão, impedindo-o de caminhar. Alguma coisa
grudenta, um tipo de cola. Então ele viu que começara a
derreter em cima das pedras portuguesas do calçadão. Levou um susto, mas não teve
forças para reagir. Primeiro, foram os pés; a seguir, os tornozelos; depois, a
parte inferior das pernas. Por fim, todo o seu corpo derretia, como uma vela
acesa derramando cera. Seus ossos, seus músculos, seus tendões, suas vísceras
desfaziam-se. Os líquidos misturavam-se numa geleia turva. Prisioneiro de metáforas, refém de
uma história inconclusa, desaparecia no visgo de vagos conflitos morais. Os
cabelos foram a última parte a desaparecer, num soluço azedo.
* * *
Manoel Olavo