Meu apartamento fica de frente para uma pracinha. Da
janela da sala, vê-se uma velha e centenária figueira, de múltiplos troncos
retorcidos e altura surpreendente. A mais importante das árvores da praça
Radial Sul. Crianças e cães frequentam o lugar todo dia, passeando ao redor da
árvore. Pássaros vem comer os frutos que ela oferece com abundância. Todo dia
de manhã, ao sair para o trabalho, eu dirijo, sem pensar, um olhar de ternura
pra ela. Uma espécie de reverência muda. Hoje de madrugada, a figueira caiu.
Toda ela, não. Caiu boa parte da copa, alguns troncos racharam. Fez um
barulhão. Fios elétricos foram derrubados. Pedaços do tronco partido
espalharam-se na areia grossa da praça. A figueira virou risco urbano. Tudo o
que acontece nesta megalópole sugere caos. O povo assustado se aglomera em
torno de acontecimentos como esse. Veio gente ver a figueira partida. Há um
medo desproporcional, sem cara, que corrói e envenena as pessoas. Medo do
vizinho, Medo da própria sombra. Medo de árvore.
De manhã, acordei com o som das motosserras. Ainda estão zunindo. Da janela, vejo uma enorme máquina esquisita, uma altíssima girafa mecânica pintada de branco, erguendo uma cesta dentro da qual um homem de uniforme zune uma motosserra incrivelmente barulhenta. Estão retalhando a figueira. Cortando o resto que não caiu. Pedaços dela são espalhados pela praça. Há um murmúrio frenético, um vai-e-vem incessante. Parece que os operários extraem um inexplicável prazer de sua atividade homicida e antinatural. E o povo curioso se reúne pra ver a carnificina.
Pensei em não escrever uma linha hoje. Tudo o que eu fizer corre o risco de parecer um poema de amor. Não gosto dessa banalidade lírica em mim. Não gosto quando enfraqueço. Há um céu azul e enorme sobre minha cabeça, há o barulho irritante da motosserra, há a morte da figueira, há uma dor no coração que parece estar rasgando ao meio, como uma folha de papel. Vem um vento quente, levanta poeira pela sala, embala as coisas modorrentas, me faz pensar que o tempo passa, que tudo acaba e não tem jeito mesmo, tudo passa, tudo morre, como a figueira. Que eu preciso sair desta cidade, encontrar alguma paz, uma harmonia maior dentro de mim, embora reconheça que estou mais inteiro do que costumava ser. Mais inteiro, não sei dizer. Pelo menos estou mais calmo. Parece tolo e banal, e de fato é. Mas é muito no meu caso.
Aguentar, não me consumir, é um desafio diário para mim. Como Sísifo subindo e descendo a montanha, empurrando aquela imensa pedra. Mas a dor é tanta quando volta, dá o desespero do vazio, do desencontro, do sem sentido, de tudo o que se perdeu, do vento que eleva e borrifa rajadas de ilusão e autoengano nas circunvoluções da minha cabeça, e vem a vontade de ser criança, vem a vontade de amar como saída para tanta falta, para tanto descaminho, um jeito irreal e infantil de pensar que algo pode ser inteiro, que tamanha solidão pode ser aliviada...
Mas já vi o bastante para saber que a imaginação é traiçoeira, frustra, mente, faz doer ainda mais, que as promessas se desfazem, ou sequer existem, que o leito do rio está vazio, que nada detém a marcha do tempo e da morte, que encontro e desunião é a ordem natural das coisas. Tanta coisa que não está mais aqui comigo, e deveria, e a ausência nos separa, e o tempo mata, enquanto eu fico entrecortado na janela pela luz através da qual vejo a figueira sangrando, silenciosamente a figueira sangra e se despede...
De manhã, acordei com o som das motosserras. Ainda estão zunindo. Da janela, vejo uma enorme máquina esquisita, uma altíssima girafa mecânica pintada de branco, erguendo uma cesta dentro da qual um homem de uniforme zune uma motosserra incrivelmente barulhenta. Estão retalhando a figueira. Cortando o resto que não caiu. Pedaços dela são espalhados pela praça. Há um murmúrio frenético, um vai-e-vem incessante. Parece que os operários extraem um inexplicável prazer de sua atividade homicida e antinatural. E o povo curioso se reúne pra ver a carnificina.
Pensei em não escrever uma linha hoje. Tudo o que eu fizer corre o risco de parecer um poema de amor. Não gosto dessa banalidade lírica em mim. Não gosto quando enfraqueço. Há um céu azul e enorme sobre minha cabeça, há o barulho irritante da motosserra, há a morte da figueira, há uma dor no coração que parece estar rasgando ao meio, como uma folha de papel. Vem um vento quente, levanta poeira pela sala, embala as coisas modorrentas, me faz pensar que o tempo passa, que tudo acaba e não tem jeito mesmo, tudo passa, tudo morre, como a figueira. Que eu preciso sair desta cidade, encontrar alguma paz, uma harmonia maior dentro de mim, embora reconheça que estou mais inteiro do que costumava ser. Mais inteiro, não sei dizer. Pelo menos estou mais calmo. Parece tolo e banal, e de fato é. Mas é muito no meu caso.
Aguentar, não me consumir, é um desafio diário para mim. Como Sísifo subindo e descendo a montanha, empurrando aquela imensa pedra. Mas a dor é tanta quando volta, dá o desespero do vazio, do desencontro, do sem sentido, de tudo o que se perdeu, do vento que eleva e borrifa rajadas de ilusão e autoengano nas circunvoluções da minha cabeça, e vem a vontade de ser criança, vem a vontade de amar como saída para tanta falta, para tanto descaminho, um jeito irreal e infantil de pensar que algo pode ser inteiro, que tamanha solidão pode ser aliviada...
Mas já vi o bastante para saber que a imaginação é traiçoeira, frustra, mente, faz doer ainda mais, que as promessas se desfazem, ou sequer existem, que o leito do rio está vazio, que nada detém a marcha do tempo e da morte, que encontro e desunião é a ordem natural das coisas. Tanta coisa que não está mais aqui comigo, e deveria, e a ausência nos separa, e o tempo mata, enquanto eu fico entrecortado na janela pela luz através da qual vejo a figueira sangrando, silenciosamente a figueira sangra e se despede...
Cumpre a meus olhos que deveriam ser
maduros achar que não. Que há uma ordem natural e compassiva nas coisas. E
pedir calma a esta vida diversa que brota em mim, me desfalece e dói fundo no
meu coração...
Manoel
Olavo
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