Quando eu era criança
Dormia num
Colchão de palha
Com cheiro de urina
E sonhava com o dia
Em que todos seriam amenos
E diriam coisas verdadeiras
Eu me sentia só
Achava que o mal
Era ter nascido longe
Na beira do pantanal
Junto à grosseria
Dos peões de fazenda
Dos garimpeiros armados
De mulheres que se pintavam
Pra missa de domingo
E telefonavam umas pras outras
Contando os podres
De maridos e filhos
E gente que se visitava
Todo dia à mesma hora
E padres boçais
Que puxavam a orelha
Dos meninos no colégio
E primos boçais
Que puxavam o cabelo
Dos meninos em casa
E o Deus de minha mãe
Que ela disse que punia
E a mãe de minha mãe
Que ela disse que era santa
Mas era louca, isto sim
De noite ficava abraçada
À minha mãe e outros filhos
Com a luz do lampião apagada
Porque via fantasmas cercando
A casa na beira do rio Coxipó
Todos ficavam em silêncio
Rezando pras almas irem embora
Foi minha avó quem deu à minha mãe
O nome de outra filha morta
E lhe disse que elas eram
A mesma pessoa
E eu tive medo disso tudo
E chorei e quis
Fugir dali sair do meio
Daquela gente assustadora
Eu quis viver como
Os personagens dos livros
Mas tive de aprender
A viver calado e só
Olhando pra cima ou pra dentro
Chorando em silêncio
Porque homem não chora
Eu subia em cima do telhado
Pra escapar daquilo
E lia histórias
De gente calma
Com enredo admissível
Mais tarde eu viajei
Vim ao Rio de Janeiro
E vi gente que ria sem medo
E bebia e fumava e ia à praia
E falava de cinema e de teatro
E parecia saber de si e ensinar como
Então eu decidi morar no Rio
Vim estudar e nunca mais voltei
Mas vi que era tudo mentira
Que a gente má e louca
Existe em toda parte
É mais real do que os mitos
Que não falam a seu respeito
E a gente branda está
Onde se possa vê-la
Hoje estou em pedaços
E penso no que sobrou
Após tanto tempo vivo
Há muitas léguas
Da cidade que deixei
Há muito tempo
Da cidade que deixei
E que pulsa em mim
Em desabridos viços
Mas eu fiquei tão só comigo
E sei que a gente má é má
Em qualquer parte
E a dor atualiza o tempo
De viver entre essa gente
Em toda cidade
Onde o sol se por.
Manoel Olavo